O melhor do mundo é a pior falácia
Há uma obsessão pelo número 1, pelo imperdível, por aquilo que “tem que ir”. E é tudo uma balela!
Já falei de listas, de prêmios, eu sei! Mas é um tema recorrente nestes tempos de imediatismo em que é sempre mais fácil decidir dessa forma: “não tenho tempo de experimentar tudo, me diz aí o melhor, aquele lugar que eu não posso deixar de ir”. Cortar caminho, ir direto ao ponto, chegar ao cume.
Perdi as contas de quantas vezes me perguntam qual o melhor restaurante que eu já fui. Respondo: “Hoje?”. “Não, sempre!”, insistem. “Não há!”, concluo, para descontentamento do interlocutor. Porque realmente não há. Essa história de “melhor restaurante”, “melhor bar”, “melhor chef”, “melhor-qualquer-coisa” é uma falácia. É impossível dizer que o X é melhor que o Y se não há condições de analisá-los de forma técnica, prática, em paridade, sob os mesmos critérios.
O “melhor” é uma construção vazia numa sociedade que só se importa em chegar lá, registrar a presença com um post, rir amarelo numa selfie. Seja onde for, da forma que tiver que ser. É uma obsessão abstrata e volátil, vazia e reducionista. Que nos tira justamente a beleza do caminho, do descobrimento.
Como se fossemos capazes de termos todos a mesma convicção num mundo tão polarizado entre pontos de vista. E que, aliás, condiciona nossa própria opinião sobre algo que nem sempre concordamos. É o melhor, então eu tenho que gostar.
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Digo logo: não gosto nada do Paradiso, bar de Barcelona que ganhou como melhor bar do mundo esta semana nos 50 Best Bars — sim, as listas já alcançaram os copos. Fui duas vezes: achei os coquetéis mal elaborados, doces, desequilibrados. O clima é muito festivo para um senhor de quase 40 anos e o público evidentemente não aprecia beber como hedonismo — muitos devem ter chegado ali justamente por listas.
Não estaria nem nos meus top 10! Mas e daí, a quem importa minha opinião? A ninguém! Porque o bar segue com filas na porta. Depois do anúncio, então, nem imagino quanto tempo levará para conseguir um lugar no balcão.
Mas tento entender o zeitgeist por trás dessas escolhas. A tentar perceber o que, afinal, rege as listas que tentam prever o que buscam as pessoas — ou que, ao menos, tentam determinar o que elas devem (ou não) consumir.
Em um texto para analisar a lista dos 50 Best Bars, o jornalista Hamish Smith escreve:
“Podemos dar como certo que esses bares têm um ótimo serviço, decoração brilhante e marketing afinado – o Paradiso não é desleixado aqui – mas e a abordagem dos drinks? É discutível que seis dos nove vencedores tenham fundações em estilo clássico, amarrando o nó entre história e modernidade. (…) Nos casos do Artesian e do Paradiso, a apresentação dos coquetéis tornou-se quase tão importante quanto os próprios líquidos. Dentro desse estilo, as bebidas tendem a ser enquadradas em peças de conversa, que aumentam a experiência de beber, e muitas vezes vêm com a grande revelação de novos menus sempre maravilhosos. A vitória do Paradiso nos lembra que a tendência de bebidas teatrais não abriu caminho inteiramente para coquetéis centrados em ingredientes e serviços estéticamente minimalistas. As filas que saem do Paradiso todas as noites provam que o entretenimento líquido continua vendendo”
Ou seja, muito mais vale hoje a forma que o conteúdo. A estética que o produto. É preciso ter "experiência", “storytelling”, “conceito”. Faz sentido. Bares e restaurantes de todos os espectros tentam inovar nesse sentido: não é a técnica que importa hoje, é a teatralidade.
Na era da (des)atenção, em que nossos olhos não pousam sobre nada por mais de poucos segundos, ganha quem cria memórias, quem nos ajuda a lembrar de algo para contar depois, logo depois que saímos da mesa jea de olho no celular.
E quanto mais sensoriais e intelectuais essas memórias forem (ainda que mastigadas e cuspidas), maior o engajamento e mais chance elas têm de durar nas nossas mentes em turbilhão.
No caso das cozinhas, pode ser o serviço na mesa (algo que tem voltado justamente por esse apelo de teatralidade), um prato que nos oferece o inédito (comer carne de urso, veja bem), uma forma totalmente inusitada de comer: lamber o prato, sugar por um canudo uma sopa a partir de um vaso, tomar um coquetel que se ilumina quando as luzes se apagam.
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Lembro pouco dos pratos que como assim que deixo um restaurante. Tem sido cada vez pior: por isso fotografo, anoto e posto como uma memória externa que o meu cérebro já combalido não consegue guardar. Um HD das informações que sou incapaz de reter.
Claro, às vezes um prato causa um arrebatamento difícil de esquecer. Mas tem sido cada vez mais raro. Porém, tendo a lembrar sem esforço de todas as vezes que me fazem chupar um mamilo de ostra em um “seio” de gelo, que me servem um tartar de pênis de veado, que me fazem tirar de uma gaiola (onde são colocadas galinhas em uma granja) uma perna de frango para devorá-la com a culpa de um membro de uma sociedade que não respeita o direito dos animais.
Nesse sentido, poucos restaurantes ainda trazem latentes em mim lembranças de uma refeição como o Alchemist, em Copenhagen. Não quero estragar as de quem lá ainda não esteve (há um destaque no meu Instagram para ver os vídeos que eu gravei lá), mas entre partes pouco comuns de animais, entre projeções em um domo gigante, um prato que me fez colocar na boca uma borboleta inteira e outro que me ofereceu uma foto minha para degustar, é dos poucos menus que tenho (quase) todo na cabeça. Parece que esse tipo de gatilho mental faz mesmo a diferença. (E é cientificamente comprovado, como um estudo feito pelo Mugaritz que conto nessa reportagem aqui).
Mas entre sabores e circo, eu fico com a hospitalidade — e o poder que essa devoção ao cliente ainda pode causar quando visitamos restaurantes. Ainda o Alchemist: minha última visita ao restaurante ocorreu em julho, quando os festivais de música tomavam a programação e os espaços da capital dinamarquesa.
Em Refshalevej, onde fica o restaurante, dois festivais aconteciam no mesmo sábado da minha reserva. Fui a pé e percebi a lotação das ruas com filas e filas de pessoas. Lá dentro, fui transferido para outro universo e esqueci do mundo real lá fora. No final do jantar, o maître me perguntou se eu tinha ido de carro. Com a minha negativa, explicou que o trânsito estava impossível e que, por isso, seria muito difícil que um táxi conseguisse chegar para pegar a mim e outros comensais daquela noite, razão pela qual eles tinham alugado um barco que nos apanharia ali e nos deixaria em Nyhavn, já longe do burburinho. “Podemos contar com o senhor?”.
Guiados por um membro da equipe com mantas à mão para os que quisessem se abrigar do vento fresco daquela noite de verão, caminhamos poucos metros até o barco. Entramos, partimos, vimos a cidade iluminada de um porto a outro, descemos e fomos cada um para sua casa ou hotel, sem nos preocupar com o táxi que nunca chegaria.
Os melhores restaurantes do mundo, para mim, são os que se preocupam com seus clientes nessa medida. E para você?
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Para o Expresso, escrevi sobre como o bem estar animal vai ser cada vez mais importante para determinar aquilo que colocamos na boca. Uma discussão urgente que diz muito sobre os valores éticos que construímos em torno da alimentação.
A região de Évora, em Portugal, tem crescido muito em novas propostas gastronômicas interessantes. Fiz uma lista de lugares a visitar para a CNTraveler (Espanha)
Ainda sobre food porn, escrevi para a BBC Brasil como a imagem de comidas gostosas influenciam nosso cérebro.
Garfadas da semana🍴
Em tempos de economia de gás e energia, um serviço do que cozinhar com o calor residual do seu forno enquanto ele esfria [The Guardian]
Madre mia, pizzaioli, parem com a tendência de queimar as bordas das pizzas [Eater]
O bom jornalismo no Instagram: a história do primeiro restaurante filipino no Brooklyn [Instagram]
O aquecimento global chegou aos freezers dos nativos do Alaska obrigando-os a mudar a alimentação [The New York Times]
O que um clássico sobre os animais de George Orwell tem a ver com a guerra na Ucrânia? [La Vanguardia]
E esse restaurante para chamorro em San Francisco que serve menu degustação por 75 dólares para os animais? [Fine Dining Lovers]
Não tem discussão: o único corte possível para seu sanduíche é DIAGONAL [The Washington Post]
Os donuts chineses não apenas introduziram um novo consumo nos EUA, eles foram um símbolo de resistência para imigrantes [Los Angeles Times]
O epidemiologista brasileiro que cunhou o termo “ultraprocessados” para os alimentos e jogou uma granada na nossa dieta moderna [Piauí]
Toda a supremacia da farofa [Instagram]
Gostei da perspectiva do texto, "a beleza do caminho, do descobrimento" como sendo melhor que a teatralidade da coisa. Amei o tratamento dado pelo restaurante Alchemist aos clientes. Certamente, para mim, esse seria um importante critério, muito mais que a aparência ou experiência com a comida em si. Realmente, o "melhor" sempre é um ponto de vista e depende de muitos fatores.
rafa, li essa edição com atraso, mas que deleite --adorei ;)
texto e conteúdo!