Cozinhar é um superpoder
Colocar-se em frente ao fogão nos torna independentes no sentido maior da palavra
Não é preciso uma foice, um soutien queimado ou uma guilhotina. Com uma cenoura numa mão e uma faca bem afiada na outra já temos o suficiente para conclamar uma das maiores revoluções que podemos empreender do ponto de vista individual. A do ato de cozinhar. Sim, falo da ação de reunir ingredientes, descascá-los, picá-los, refogá-los, cozinhá-los. Transformá-los em alimento, em suma. Algo que sacie nossa fome, aplaque a saudade, satisfaça nosso hedonismo. Não é pouco!
Se cozinhar transformou a nossa espécie, ressignificou nossa existência sobre a Terra e determinou nossa evolução em 1,5 milhão de anos, já pensou o que é que o fato de preparar a tua própria comida pode fazer na tua vida diária? Creio que não. Porque não pensamos tão a sério nisso. Porque não achamos que é assim tão importante, tratamos como algo secundário nas nossas rotinas. “Tá bem, dá jeito às vezes fazer um ovo e um arroz, claro. Mas também não é preciso exagerar”. Eu penso que é!
Porque não valorizar ou eventualmente até abrir mão dessa habilidade é um desperdício. Ou até uma falta de respeito com nossos ancestrais do Paleolítico que se esforçaram tanto para conseguir esmagar raízes com as mãos, passaram dias a lapidar uma pedra para retirar as escamas de um simples peixe ou até aprenderam por séculos a dominar as chamas. É virar as costas para o grande salto evolutivo que justamente essas ações nos relegaram como espécie. Só somos o que somos porque alguém lá atrás decidiu que era hora de processar a comida antes de metê-la na boca.
Cozinhar foi a mordida da aranha, o nosso Krypton, o raio gama que nos dotou de habilidades verdadeiramente especiais, que nos fez intelectualmente superiores a outras espécies. Não “apenas” a habilidade de misturar ingredientes, de dominar a intrincada arte da pastelaria, de poder fazer alguém entrar em transe com uma só colherada (Isso também!). Cozinhar é, sim, um superpoder, algo que melhora conforme nossa dedicação e nosso treinamento, claro, mas que já está no nosso material genético como uma mutação conquistada. Com uma panela na mão, somos todos potencialmente Avengers.
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Todos nós deveríamos saber cozinhar, como sabemos ler e escrever, amarrar o tênis, escovar os dentes ou pegar o ônibus. Da mesma forma que aprender a dirigir nos dá, mais do que uma licença, a liberdade de ir e vir, pôr-se em frente à bancada da cozinha torna-nos independentes no sentido maior da palavra. Quando aprendemos a cozinhar arroz o que desenvolvemos é nossa capacidade de dizer não a alimentos ultraprocessados. Quando sabemos preparar o jantar com os restos da geladeira (um ovo, um iogurte, um bocado de coentros tristes) criamos a autossuficiência de não ter que pegar no celular para mandar vir o mais seboso dos hambúrgueres da rede de fast food.
(Vejam bem, não estou condenando o ato de comê-lo de vez em quando, nos dias difíceis a tentar recuperar-se de uma rotina brava: o problema é estar entregue a ele, é ter que relegá-lo toda sua frugal existência como um bebê deitado no berço a espera de que a mãe venha preencher seu pequeno estômago).
A indústria alimentar se desenvolveu com a nossa preguiça, evoluiu a partir da nossa passividade. Soube tirar proveito disso: como resposta à nossa letargia, deu-nos embalagens cheias de açúcar, de sódio, de gorduras trans. E à medida que saciava mais e mais nossa fome, fomos voluntariamente nos afastando dos fogões. Um daqueles dilemas de causa-consequência em que é difícil saber ao certo o que é efeito do quê.
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Enquanto os governos não percebem que cozinhar precede a saúde pública — o que nos livraria de tantas doenças! — e que deveria ser matéria com provas semestrais na escola junto com a matemática e a gramática; que a maioria dos pais não insere seus filhos nas cozinhas desde pequenos para que tenham confiança com aquilo que vão meter na boca; que a sociedade não dá valor a este ato como dá, por exemplo, ao de “consumir”, temos que buscar o conhecimento fora, por nossa conta.
Ainda bem que há (cada vez mais) programas de televisão, que há livros de cozinha, sites e mais sites, que há discussões sobre receitas para nos lembrar que cozinhar, portanto, é a aptidão de (re)conquistar o papel de decisor e poder dizer não com propriedade — e boca cheia. É não ter que aceitar nada que não nos apetece, é até insurgir-se contra o sistema vigente, se assim o quisermos. É por isso que defendo essa revolução. Que pode e deve começar ali, naquela trincheira da vida moderna que é nossa cozinha, na guerra mais saborosa à qual deveríamos nos alistar.
Visite nossa cozinha 🍳
Na minha estréia no The Washington Post (e que emoção escrever para o jornal que formou minha visão jornalística!) escrevo sobre a diversidade da pastelaria portuguesa — e porque só comer pastel de nata é tão redutivo.
Escrevi para o Culinary Backstreets sobre a reabertura do Bolhão, o mercado central do Porto que, com suas barracas de frutas, verduras, carnes e embutidos, é a veia principal a da alimentação da cidade.
Garfadas da semana🍴
O plano da Coreia do Sul de transformar sua cozinha em um tesouro nacional e um bem cultural ‘tipo exportação’ [T Magazine / NY Times]
Pão enlatado, barrinha de vegetais congelados, presunto a vácuo: o arquivo dos experimentos do governo americano para alimentar o seu exército durante a Guerra ao Vietnã [Le Monde]
Chegou a vez do whisky gluten-free [Tasting Table]
O que se perde quando um restaurante perde uma estrela? Perspectivas, prestígio e sonhos, para início de conversa [The Takeout]
A homofobia que existe nos restaurantes e a dificuldade de ser LGBTQIA+ na gastronomia [El Comidista]
Uma fazenda numa estação de metrô de Seul [Atlas Obscura]
A era do “paywall” chegou aos restaurantes: conseguir uma reserva vai ser cada vez mais caro [NY Times]
Macbeth como um chef de cozinha de um restaurante com estrela Michelin? [Twitter]
E a única coisa que me pegaria nessa modinha de Helloween: um pão do Han Solo [Eater]
Mais uma da série “comida é política”: o prefeito que iniciou um jejum de Coca-Cola(!!) para eleger Bolsonaro [Estadão]
Oi, querido. Tudo bem?
Adorei essa edição da sua news! Tb acho que deveríamos aprender a cozinhar desde pequenos, como aprendemos a escrever ou a fazer contas, e que cozinhar é revolucionário.
Mas, sobre o argumento de que "a indústria alimentar se desenvolveu com a nossa preguiça, nossa passividade, nossa letargia", acho que parte de um ponto de vista um tanto masculino da coisa. Há muitos estudos que atribuem o desenvolvimento da indústria principalmente à entrada da mulher no mercado de trabalho. A indústria ocupou esse espaço de um trabalho doméstico pesado que nunca foi remunerado e que sempre havia sido executado por mulheres. Mesmo a terceirização do trabalho doméstico (que não por acaso se dá sobretudo em países de herança escravocrata) é uma atribuição patriarcal do trabalho a uma (outra) mulher, desta vez (mal) remunerada. Trabalho este que poderia simplesmente ter sido dividido com os homens no momento em que as mulheres saíram de casa para trabalhar, se vivêssemos em uma sociedade menos patriarcal.
Então, assim, acho que ainda precisamos de muita foice, muita guilhotina e muito sutiã queimado para revolucionarmos nossos cotidianos e, consequentemente, o impacto da indústria, do patriarcado (ou de nosso próprio engenho) sobre ele. Porque, para nós, mulheres, não há "ponto de vista individual". Se a exploração do nosso trabalho se dá de maneira coletiva, a resistência a ela tb deve sê-lo. De preferência, incluindo aliados homens que pensam a alimentação, como vc. ;)
Um abraço aqui do outro lado do oceano,
Flá Couto
Rafa, que delícia de artigo! Tb acho que deveria ser obrigatório aprender a cozinhar, até mesmo para sermos mais seletivos e cuidadosos com o que ingerimos (de industrializados/ultraprocessados ou de restaurantes) e com os rumos que queremos para nosso planeta, já que nunca é só sobre comida. É uma responsabilidade que comumente se terceiriza, mas já passou da hora da sociedade perceber que cada um tem um pedacinho dessa responsabilidade. Obrigada pela tua escrita! :)