Vieiras, vômito e luta de classes
Nas telas, cada vez mais a comida é pretexto para falar sobre subjugação e privilégios
Comida é sempre um bom subterfúgio para falar sobre a luta de classes. O que comemos, afinal, diz muito de quem somos — e dos privilégios que colecionamos. O cinema, recentemente, tem tornado comum o uso da alimentação como metáfora para falar da discrepância crescente de quem come caviar e quem não sabe o que vai poder comer.
Alimentação na tela não é algo novo: desde que Louis Lumiere teve a ideia de filmar a família de seu irmão Auguste tomando café da manhã em 1895, cinema e gastronomia andam de mãos dadas. Essa discussão sobre comida e representatividade social já começou a aparecer há muito tempo: no clássico “Encouraçado Potemkin”, nacos de carne podre são o celeuma para despertar a ira dos marinheiros, revoltados com o tratamento que lhes era prestado.
Muitas discussões se passaram em torno das mesas no cinema. Mas agora, a comida volta às telas, mas como um símbolo indigesto do conflito de classes — uma prova de como a gastronomia, especialmente nos últimos anos, passou a representar um novo status social, em que folhas de ouro, doses de caviar e acesso aos melhores restaurantes indicam uma nova reorganização da nossa sociedade: ascensão, ostentação, exclusividade, futilidade. Tudo está sobre a mesa.
*
No novo “O Menu”, que acaba de chegar às telas, Ralph Fiennes faz o papel de um “gênio” da gastronomia atormentado e ensimesmado com a aura criada em torno dele. Em uma pequena ilha remota, dirige um restaurante-destino que atrai grupos privilegiados de pessoas dispostas a desembolsar mil dólares para ter a chance única de provar sua comida: bros do mercado financeiro, críticos de restaurantes, foodies alpinistas sociais e artistas decadentes.
“Preciso implorar-lhes por uma coisa: não comam! Degustem. Saboreiem. Deliciem-se. Reflitam sobre cada pedaço que colocarem na boca. Tenham consciência. Mas não comam. O nosso menu é muito precioso para isso”, diz o chef antes que o banquete seja servido.
Um dos primeiros pratos que chegam à mesa são um aviso do que vem a seguir [e prometo não entregar demais aos que não viram o filme]: abraçado à mãe alcoólatra sentada em uma das mesas, ele explica que a receita foi baseada em uma história de infância: quando o pai bateu tanto na mãe que ele, ainda um garoto, teve o instinto de enterrar uma tesoura na perna do patriarca para que ele parasse. Nas mãos dos garçons, uma coxa de ave assada à perfeição com uma pequena tesoura cravada.
O filme, entre o terror fantástico e o thriller social, é uma sátira do papel que a gastronomia atingiu hoje: uma espécie de seita seguida por endinheirados dispostos a comer tudo aquilo que lhes for servido por um grande chef — entre “uaus” e “uhns” — com nenhum ceticismo e uma diligência quase cega. O jantar, na verdade, é um ritual sanguinário que põe os comensais em uma ridícula posição de reféns da genialidade (e da psicopatia, nesse caso) do chef. A única que se salva é a personagem de Ann Taylor-Joy, que interpreta uma acompanhante de luxo, visivelmente deslocada do furor coletivo que tem em torno de si. Ela, também, mais uma peça para gerar satisfações a pessoas dispostas a pagar o que for preciso para alcançá-las.
*
Na mesma temática, “O Triângulo das Tristezas”, vencedor de 2022 da Palma de Ouro em Cannes, apresenta a elite endinheirada em um mesmo cenário de confinamento: dessa vez, um luxuoso iate que reúne oligarcas russos, empresários bélicos e o casal protagonista, um modelo em decadência com sua namorada linda e influencer digital — presente não pelo dinheiro que tema, mas pelos likes que atrai.
A comida, de novo, entra em cena para mostrar os símbolos do elitismo moderno. E, de novo, subjugada em um banquete escatológico com vômitos por toda a parte, gerados por uma tormenta que atinge a embarcação. Em meio à violenta tempestade, os garçons não param de servir para agradar os passageiros. Estes, se recusam a parar de comer porque continuam a ser servidos. Um intrincado e inabalável jogo de classes regado a caviar, vieiras e biles.
O premiado chef sueco Ruben Östlund diz ter trabalhado com um chef com estrelas no Guia Michelin para pensar na cena: “OK, então se você está em um iate e as pessoas estão lutando contra o enjôo, qual seria a pior coisa que você poderia colocar em um prato na frente delas?”, ele perguntou. Na cena, o enjoo também é da plateia.
Östlund disse que a comida se tornou esse símbolo mais caricato para expor a mesquinhez, a ganância e a sordidez que regem um planeta onde um terço da população não tem acesso regular à alimentação e onde os menus dos grandes restaurantes ultrapassam os quatro dígitos nas contas. E as cenas finais, em que os passageiros ficam à mercê de uma das empregadas filipinas da tripulação por ela ser a única capaz de cozinhar para eles, é de um sarcasmo brilhante do roteiro.
Uma analogia do sistema de produção alimentar em que percebemos tão pouco quanto dependentes e entregues estamos: aos piores trabalhadores rurais, às mega corporações capitalistas, a governos mais preocupados com lobbies e corrupção do que com a saúde da população.
Da inesquecível imagem de Charles Chaplin afundando os dentes em uma bota em “A Corrida do Ouro” às críticas da roupa do motorista “cheirando comida barata” no brilhante e cultuado “Parasita”, a comida tornou-se um símbolo importante e atual para expor em telas gigantes o elitismo e a riqueza de um mundo consumido pela desigualdade gerada por pessoas insaciáveis e sem limites em seus cartões black. E que, numa ânsia de uma satisfação inalcançável, se sujeitam a qualquer coisa para manter seu papel no topo da cadeia alimentar. Nem que isso lhes custe sangue e muitos fluidos.
Visite nossa cozinha 🍳
Ainda sobre ostentação e contas caríssimas, dei minha contribuição na minha coluna da Viagem para mostrar que nem só de folhas de ouro vive a cena gastronômica dos Emirados Árabes: há restaurantes autênticos surgindo na riqueza do deserto.
E na Folha de S.Paulo, escrevi sobre uma cidade que está justamente na direção contrária disso tudo: Estocolmo, a capital sueca, é a tradução do cool despretensioso, do estilo de vida simples pautado por uma qualidade de vida única — mas também com um pouco de caviar, que nenhum nórdico é bobo.
Garfadas da semana🍴
Por que é que os restaurantes estão cada vez mais em busca de vinhos exclusivos, de garrafas únicas? [El País]
Um novo minimalismo na gastronomia: ingredientes simples, empratamentos descomplicados [Grabstreet]
Os melhores novos restaurantes de 2022 nos Estados Unidos: vale pela leitura dos estilos e de como existe uma transformação corrente na gastronomia (que é mundial!) de conceitos mais casuais, de espaços dominados por latinos e imigrantes, de uma cozinha que é cada vez mais plural — ainda bem! [Eater]
É a hora dos produtores de Champagne se unirem para banir herbicidas de seus vinhedos. É o que defendem alguns deles. [Le Monde]
E, afinal, qual é o melhor café de cápsula que se pode encontrar no mercado? [Paladar/Estadão]
Aparentemente, mais do que boas cestas, há atletas da NBA capazes de fazer bons vinhos. [The Wall Street Journal]
Documentos revelam que a Academia de Nutrição e Dietética dos EUA — órgão responsável por criar muitas das políticas públicas do país sobre a nutrição da população — tem relações financeiras com grandes grupos da indústria alimentar [Guardian]
Se a Bee Wilson conseguiu, talvez você consiga também: como aprender a amar seu microondas? [The Observer]
Quando o chef do restaurante diz que faz foraging para garantir os produtos frescos e locais do menu, é disso que ele está falando? [Instagram]
Como cápsulas de plantação para condições inóspitas podem nos ajudar a produzir comida em Marte quando tivermos que ir pra lá (eu espero que não!) [Wired]
"Um intrincado e inabalável jogo de classes regado a caviar, vieiras e biles." 👏🏼
Pergunta mais interessante pra os espectadores do filme “the menu” é, se calhar, qual seria o prato da memória que um Chefe psicopata em Portugal podia fazer em vez do cheeseburger. E a pergunta que surgiria imediatamente depois seria cerca da impossibilidade de haver este tipo de Chef num país onde nem há três estrelas, nem parece a garra pra isso. E a terceira pergunta que o comensal deste filme fazia-se seria a volta da necessidade de mais cozinheiros e menos chefs, mais “escudellas” y Maria Nicolau e menos menus de degustação pra pessoas que valoram mais uma colher de caviar do que um nabo perfeito.