Uma ode às sopas
Não existe comida mais democrática e afetiva, mais prática e completa: com uma colher na mão e o prato diante da mesa, a sopa me emociona!
Lembro-me das palavras do celebrado crítico francês François Simon que dizia que nunca devemos acordar o nosso estômago aos pontapés. Precisamos tratar bem nosso apetite, esse amigo e companheiro de tantas viagens. Para isso, ele alertava, não podemos nos enganar por todas as frivolidades que o dono do restaurante despeja em nossa mesa para tentar nos agradar — quando sabemos que o que ele realmente quer é nos fazer gastar uns trocados a mais com aquelas bolachas duvidosas. Não! É preciso todo o carinho. “O estômago pede apenas uma coisa: começar suavemente, tranquilamente”, apontou em seu Comer é Um Sentimento (o livro de comida com o nome mais lindo que já li).
É por isso que Simon defendia que as sopas são uma boa forma de afago antes de mandarmos lá pra baixo um naco pesado de pão, uma massa muito cozida ou uma carne difícil de digerir. Umas azeitoninhas, talvez, mas nunca um copo de água fresca com muito gelo e limão. Uma taça de vinho, sim, desde que bebericada de forma branda, aos golinhos. E sempre, sempre!, umas colheradas de sopa quentinha, que é o carinho mais bonito com que podemos despertar de leve o estômago que adormeceu depois de ter processado tanta comida da noite de ontem. Acorda, meu menino, que outro dia já começou e temos trabalho a fazer.
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O meu, aqui, é fazer esta ode à sopa. Por isso essa anedota aí de cima, para tentar estimular, de forma condescendente, o interesse dos leitores. Não parece, mas sopa é tema complexo, é afetividade e praticidade, é cozimento lento e é fast food, é comida tradicional e é pop art (algo que Andy Warhol já nos ensinou). É almoço, é o melhor dos jantares — e é até pequeno-almoço de vez em quando, a depender da preguiça e do meridiano do planeta em que se está. Foi (e é) comida de reis (a da Rainha Elizabeth era a sopa callaloo) e de plebeus, é a maior representação da democratização de uma comida em todos os extratos sociais. É, aliás, a receita de caridade que geralmente fazem aqueles que têm casa para dar de comer àqueles que não as têm. Que bonito é pensar nisso!
A sopa me emociona. Não apenas o minestrone que se tornou herança da minha família de origem italiana: os cubinhos de legumes a dividir o banho quente com o macarrão curto, em formato cilíndrico, escondendo um ou outro pedaço de carne que a mãe incluía “para dar gosto”. Todo mundo tem sua sopa que é afeto. Mas me impressiona a sopa como cultura culinária despretensiosa — e por vezes tão ignorada, coitada! — e de grande importância para nossa história.
Sim, porque tudo começou séculos e séculos atrás, ainda no paleolítico, quando a sopa de pedra já era uma iguaria entre nossos longínquos ancestrais. As pedras aquecidas no fogo esquentavam a água, talvez oferecendo algum calor para os corpos pouco cobertos. E ainda alguns sais minerais.Os banquetes romanos, detalhados em relatos de Marcus Gavius Apicius, considerado o primeiro grande “gourmand” da Roma Imperial, invariavelmente também traziam sopas e caldos. Com a introdução do Islã na Europa, foram introduzidos também novos ingredientes e novas receitas, como o uso de amêndoas (e seu leite, um verdadeiro menjar blanc) e do arroz na base de alguns desses cozimentos à base de líquidos — a canja é uma boa herança desse caldeirão cultural fumegante. Também ganhamos em temperos: açafrão, pimentas, canela, cravo e outras especiarias não só tornaram os caldos mais deliciosos como ajudavam a mostrar o status social de quem os cozinhava. Quanto mais aromas, mais riqueza.
Das cerâmicas primitivas aos caldeirões de ferro, o preparo da sopa se popularizou: se na Ásia a tradição de servir caldos e alimentos similares se difundiu mais e mais no decorrer dos séculos, a mesma coisa tomou o Ocidente, também com o preparo de ensopados, numa forma de aproveitar os ingredientes na sua integralidade (dos caules aos ossos). O cozido português é um descendente direto dessa prática, tal como o bollito misto italiano, ou o pot-au-feu francês.
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Foi, aliás, na França (sempre ali!) que a sopa deixou de ser comida simples, cotidiana, para ganhar status de haute cuisine. Se os restaurantes como conhecemos nasceram da ideia de se servir um caldo “restaurante” (ou revigorante, por assim dizer) para pessoas enfermas — uma invenção também francesa depois popularizada com os bistrôs que definiram o que conhecemos por esses espaços — , foi na cozinha dos chefs franceses que ela se vestiu de pompa para entrar pela porta da frente dos mais importantes redutos da gastronomia, nos mais faustosos reinados. Carême, o cozinheiro de todos os cozinheiros, se esmerou na tarefa de tornar a sopa uma receita digna de técnicas e valorização. “São necessários quase um século de sucessores de Carême para levar as sopas ao estado de perfeição que elas alcançaram em nossos dias”, escreveu sobre seu mentor Auguste Escoffier, que ficou, ele próprio, conhecido por classificar as sopas por sua densidade.
Durante a Revolução Industrial, no entanto, com o advento da indústria de alimentos que permitiram criar nas fábricas processos que tomavam muito mais tempo na cozinha, as sopas ganharam aliados importantes: caldos e temperos prontos, para só diluir na água. Depois, elas mesmas passaram por ultra processamento e entraram na lata, viraram pó.
Mas a sopa seguiu na boca do povo. Não importa qual idioma falamos, sempre criamos diversas expressões para mostrar o nosso amor por ela. Em inglês, dizer que alguém “está na sopa” é um sinal de que está em situacao difícil. Em espanhol, há ainda mais provérbios cotidianos, como “da colher à boca, se perde a sopa” ou “sopas e amores, os primeiros são melhores” (em uma alusão às memórias afetivas que as sopas nos trazem, imagino). Em Portugal, por exemplo, “levamos sopa” e “caímos no prato de sopa”. Há ainda outras expressões regionais que se perpetuaram, como a açoriana “sopa de fueiro” para quem leva aquela sova “até virar sopa”. No Brasil, “sopa no mel” é sinônimo de algo conveniente. A língua está cheia de significados, e usar nossas comidas como linguagem é uma das formas mais autênticas e representativas de como nos expressamos, como diria o filósofo Roland Barthes. A sopa diz muito de nós.
Lembro, ainda criança, de ficar maravilhado com as sopas que a mãe fazia usando aqueles massas de letras, em que criávamos na cabeça palavras e frases inteiras que poderiam ser reunidas em uma só colherada, na admirável ideia de engolir um alfabeto e pensar como o fluxo digestivo natural do meu organismo criaria expressões e até, quem sabe, versos dentro de mim: um poema constituído nos espasmos do meu esôfago até serem dissolvidos pelo suco gástrico do meu estômago. Às vezes, até deixava a sopa esfriar ao tentar pescar com a colher as letras para escrever alguma palavra específica na borda do prato: “te amo”, “Rafael”, “xixi”. Na minha cabeça fervilhante de garoto, mergulhando o talher em busca de selecionar “ces”, “ésses” e alguns “ás”, a sopa era pra mim a melhor linguagem do afeto. Ainda bem que isso não mudou!*
*Este texto é uma adaptação do prefacio que escrevi para o livro Sopeira, da Joana Barrios, publicado em Portugal pela De Zero a Oito.
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