Digito essas linhas do 37º andar de um edifício de onde vejo um cenário ao mesmo tempo excitante e assustador. Estou em Dubai, cidade em que edifícios megalômanos até então só imaginados em filmes de ficção científica foram construídos onde era apenas deserto. É uma constatação curiosa pensar em toneladas de concreto, ferro e caríssimo design erigidas sobre uma superfície tão instável, porosa, vacilante.
Deve ser culpa da vertigem da altura, só pode, mas me peguei pensando como isso pode ser uma alegoria triste para atual a cena da restauração. De todo o alicerce criado sobre o frágil que se apresentou. Já falei de certa forma disso na semana passada, e também na anterior, mas é difícil mudar de tema quando os lastimáveis números de perdas não cessam. Até porque, em uma semana repleta de mais notícias de fechamentos e pausas, caiu como uma bomba a dissolução da sociedade entre o chef catalão Albert Adrià e os empresários e irmãos Iglesias.
Isso significa o fim do elBarri, o “bairro” gastronômico que eles construíram juntos em Barcelona, levando ao fechamento definitivo do Tickets (!!), do Pakta, do Bodega 1900 e do Hoja Santa, que estavam encerrados desde março de 2020 - o Enigma, só de Albert, deve seguir. A notícia não é triste somente para a cena de restauração da Espanha, mas para todos os amantes de gastronomia, porque mostra como essa pandemia corrói projetos de melhores cidades (o elBarri era isso!), os sonhos da gastronomia como palco para os prazeres possíveis e triviais, um pouco mais da vida cultural e social das pessoas que nelas vivem, as lembranças daquelas que as visitam. Perdemos muitíssimo quando perdemos um restaurante: a diversidade multicultural, muitos hábitos alimentares, nossas próprias histórias e os momentos únicos e tão íntimos que vivemos ali. E mais tanta, tanta coisa, que tentei traduzir nesse texto.
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Tenho pensado muito nisso e, exatamente de onde estou, não consigo ver muito além no horizonte além do que é fachada — e, vá lá, um futuro árido de terrenos tomados por areia e mais areia de onde deverão brotar colossais criaturas tomadas por enormes janelas brilhantes. Pode ser uma ideia de esperança, talvez. Mas hoje ela me falta. Assim como me faltam as reflexões mais profundas, desculpem: estou por demais aturdido com o fato de tantos dos meus lugares preferidos no mundo terem acabado, e de que muito mais terão seguido o mesmo destino incontornável antes de conseguirmos sequer superar essa pandemia. É uma mistura de aflição, pesar, desilusão. Talvez um pouco de atordoamento. Semana que vem volto melhor quando estiver com os pés mais plantados no chão.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 O Eleven Madison Park, do cultuado chef Daniel Humm, criou um food truck diferente que começou a rodar pelas ruas de Nova York: a cada semana, o veículo para em uma região diferente para servir milhares de refeições para as pessoas em necessidade ou em insegurança alimentar, como o Bronx e o Brooklyn.
MAL PASSADO
👎🏼 Nas ondas de contágios que não passaram de assolar os países, obrigando restaurantes a fechar, há aqueles que insistem em abrir de forma ilegal para servir pessoas que só conseguem ser alheias à realidade do mundo. Ou como aqueles que organizaram um evento clandestino luxuoso para a alta sociedade parisiense num palacete no centro da capital francesa — e que agora são alvo de uma investigação policial. Quantos mais desses seguem alheios aos olhares das autoridades?
Visite nossa cozinha 🍳
Assim como a Espanha e a França, Portugal sempre produziu sidra. Mas a bebida feita (não só) de maçã andava esquecida nos copos dos portugueses. Agora, uma nova “safra” de produtores quer mudar essa história. Escrevi sobre isso na revista do Expresso nesta semana.
Por conta do confinamento, nossas refeições nunca estiveram tão embaralhadas. E dificilmente voltarão a ser tão regradas como antes. Mas isso pode ser melhor do que imaginamos. Minha reportagem para a revista Gama tenta explicar por quê.
Garfadas da semana🍴
A pandemia continua bagunçando a distribuição e os estoques de alimentos e bebidas: dessa vez é a vez dos vinhos sofrerem o baque [The Washington Post]
Os queijos veganos estão mais presentes nas nossas prateleiras do que nunca: deixaram de ser só tofu e ganharam um banho de tecnologia [Eater]
Você reparou que, de repente, os cogumelos estão em todos os lugares? [Vox]
Os equipamentos que podem te ajudam a evitar arruinar o jantar [Buzzfeed]
Vem aí um merecido e imperdível tributo à vida e ao legado da Julia Child [Cherry Bombe]
A nova etiqueta das reaberturas: não seja o idiota a ficar levantando da mesa para seus vídeos no Tik Tok [The Guardian]
A tradicional culinária canábica está mais acesa que nunca na Tailândia [Atlas Obscura]
Nasce um novo formato de pasta depois de três anos de desenvolvimento: com vocês, o cascatelli. [NY Times]