Soco no estômago cheio
Em uma semana, mastiguei 17 estrelas, engoli mais de 350 refeições e até agora não consegui digerir tudo
Foram 17 estrelas no intervalo de apenas uma semana. Entre Espanha e Dinamarca, 7 refeições em 7 restaurantes muito distintos. Mais de 350 pratos, cursos, “impressões” — ou como quiserem chamar — sendo que essa epopeia rematou com um largo jantar de 7 horas (para celebrar o legado do El Bulli, o mais influente restaurante da gastronomia moderna, que voltou à vida por apenas três dias).
“Isto é uma violência!”, resumiu um amigo. E é! No meu caso, confesso, tratou-se de uma questão de circunstâncias casadas com oportunidades, algo para não mais repetir. Conheço muita gente que daria uma parte do fígado para ter uma experiência assim. Eu prefiro conservar o que resta do meu e evitar expô-lo a trabalho tão extenuante mais uma vez.
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Até porque, no exagero, o prazer não tem como florescer plenamente. Nos últimos dias, novamente, estive a ler Como Cozinhar um Lobo, de M.F.K. Fisher, em que, em um contexto de guerra e de privação, do “lobo a espreitar à porta”, ela fala sobre como é preciso encontrar o gozo dos dias naquilo que comemos, até como uma reivindicação de dignidade, ou de “existir da maneira mais graciosa possível”, como ela escreve. Fisher fala de privação quando eu acabava de tentar me recuperar de uma descomedida fartura. Li suas palavras como um soco no meu estômago cheio.
Porque comer de forma automática e sem o absoluto sentido do prazer é quase uma afronta no mundo de hoje com tanta escassez de comida, no qual estamos a conviver com muitas (algumas veladas, outras absolutamente escancaradas) guerras. Respeito demasiado a comida para tratá-la como números, para colecionar pratos e restaurantes como se fossem prêmios. Que é algo, aliás, que tomou a bolha foodie nos últimos tempos: quantos são os influencers que ostentam nas bios de seus perfis no Instagram a quantidade de estrelas e rankings que comeram no último mês?
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Além de incômodos intestinais que me perseguiram alguns dias depois de tamanho repasto, passei a partilhar uma desconcertante sensação que o crítico de restaurantes do NYTimes, Pete Wells, uma vez declarou sentir em um texto que escreveu sobre o pop-up mexicano do Noma (um dos restaurantes visitei nessa orgia culinaria), e que chamou de “a small pit of shame in my gut”. E descobri que muita comida estrelada só ajuda a aumentar a sensação de gula dessa vergonha.
Garfadas da semana🍴
Nova moda nas mesas dos restaurantes de Los Angeles: trazer seu próprio tupperware de casa [Eater LA]
Primeiro foi o Dry Martini, agora o Negroni: não há limites para preparar o tradicional coquetel italiano [NY Times]
A M.F.K. Fisher adoraria essa: uma receita de pasta a partir do pão amanhecido [Guardian]
Numa sociedade dominada pelas grandes superfícies dos supermercados, procuram-se açougueiros/talhantes [El País]
Comida de graça e ameaça de morte: a dor e a delícia de ser um “cliente oculto” de restaurantes [UOL]
Tem a sensação de que está tudo mais caro nos supermercados? É porque está [Expresso]
O que faz um bom garçom? Christian Puglisi, o cozinheiro-tornado-filósofo-de-Instagram responde [Instagram]
O caviar já foi um artigo de luxo, agora vive uma banalização na gastronomia [Grub Street]
No México, mulheres bonitas sonham em conquistar a chance de ganhar uma coroa… de baunilha [LA Times]
Como pedir para o restaurante trocar seu prato sem fazer com que o garçom te odeie? [Bon Appetit]