Sempre há algo mais a dizer
Ainda sobre o fechamento do Noma: as repercussões são uma prova de que há muito o que discutir na gastronomia — sim, inclusive com você!
Alguém aí ainda aguenta falar sobre o fechamento do Noma? Sei que não é o caso de quem acompanha essa newsletter, claro, mas se algum ser acabou de cair no planeta, está aqui a notícia que tem mobilizado o discurso na gastronomia na última semana: na segunda-feira, o famoso restaurante dinamarquês, com três estrelas Michelin eleito por cinco vezes o melhor do mundo na influente lista dos 50 Best, anunciou que vai fechar as portas em 2024.
Que tenha se falado tanto sobre isso e pelos mais diversos motivos — só o The New York Times publicou três textos sobre o assunto, dedicando um raro espaço do jornal a um só chef/restaurante — é sintomático em um setor que ainda carece tanto de discussões sobre (a falta de) profissionalismo, narcisismo, egocentrismo, entre muitos outros “ismos” que rodeiam as cozinhas atualmente.
Eu mesmo escrevi pelo menos três artigos sobre o tema, inquirido pelos meus editores: um sobre o que, afinal, o encerramento do Noma pode significar para a alta cozinha — e para o fim do modelo de fine dining. Em outro, abordei as repercussões e polêmicas que o anúncio causou (e é o que recomendo mais fortemente, porque tenta fazer um “resumo” de tudo o que envolve o tema hoje), E ainda teve um terceiro (ufa!), em que contei um pouco da influência do Noma na cozinha de seus alumni, ou as “crias” que saíram do restaurante quando cozinheiros que trabalharam na cozinha de René Redzepi resolveram abrir seus próprios espaços.
Baseado em tudo o que li e escrevi, meus três pontos principais são:
Quão relevante é noticiar sobre o fechamento (que não é um “fechamento” em si) de um restaurante dois anos antes dele de fato acontecer? A quem isso interessa / beneficia?
Quando Redzepi justifica que o modelo é “insustentável” (e ele está certo sobre a enorme maioria dos casos dos restaurantes desse segmento!), a discussão deveria talvez ser mais como melhorá-lo do que apenas repercutir a notícia em busca de cliques — de jornais, mas também de influencers e todos os personagens do “circo gastronômico”, não?
Resgatar tudo o que o Noma fez de errado nesse tempo todo (como o fato de não remunerar estagiários, algo que sempre esteve em torno de TODO o setor) em busca de inquisições é só uma forma de tentar apontar culpados para um modelo que todos nós (jornalistas, cozinheiros, chefs e, sim, consumidores como você!) ajudamos a perpetuar.
São muitas as pontas a serem desenroladas a partir desses temas — e há outros, evidentemente. E acho que todos eles gerariam uma discussão ampla e necessária — sobre as quais tenho mais perguntas do que respostas, preciso confessar.
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Mas quero pegar no terceiro, que acho que foi o menos falado (pelo menos de dezenas de coisas que li). Deixo claro já: não quero passar pano para ninguém. Chefs que se beneficiaram com esse modelo por anos (como Redzepi) precisam ser criticados, sim, responsabilizados, até punidos quando é o caso (Mario Batalli estea aí para provar). O problema precisa ser mostrado, denunciado, inclusive pela imprensa — que aqui e ali, em pouca ou grande medida, tem me mexido um pouco mais nesse sentido (e esse artigo do Financial Times é uma prova).
Mas, assim como mudou o significado da comida como conhecemos, mudou também o papel dos chefs, que deixaram de ser profissionais que colocam a comida no prato, para se tornar, em alguns casos, uma espécie de intelectual com impacto na opinião pública, que compartilha sua visão em colunas, espaços de opinião...
Na verdade, a sociedade passou a idolatrá-los: esperar que eles sejam líderes, tenham ideias próprias, conduzam conversas sobre sustentabilidade, biodiversidade, pensem, reflitam... Agora também passando por questões de igualdade ou cultura da cozinha. É um grande salto qualitativo se considerarmos que até pouco tempo atrás eram considerados operários ou que em tantos casos não possuíam diploma universitário.
Esperamos que sejam criativos, inovadores, que tenham novidades para nos surpreender. Demos e esperamos muita responsabilidade deles! Por isso, deixo, aqui, uma reflexão que é a que mais me toca agora: uma percepção culposa de que todos nós, jornalistas, gourmets, chefs, comensais... fomos cúmplices da configuração do sistema atual e dos problemas que ele tem causado.
Por exemplo, se falamos da cultura do trabalho nas cozinhas, todos sabemos que existe uma cultura brutal de permissividade em relação ao bullying, assédio sexual, discriminação, agressão física e verbal, linguagem violenta ou desrespeitosa em geral... Sabemos também que o sistema atual exige uma dedicação ridícula de tempo e esforço, a ponto de destruir qualquer possibilidade de as pessoas desta união conseguirem um equilíbrio entre trabalho e espaço ou tempo pessoal, o que tem afetado enormemente a saúde mental dessas pessoas
Nós sempre soubemos disso — e nunca paramos de falar desses restaurantes, de frequentá-los, de postá-los em nossas redes sociais! Nesse sentido, muitos de nós, inclusive jornalistas, como eu, temos permitido aceitar tudo isso como algo que simplesmente é assim. Que algo precisa ser feito, eu não tenho dúvida. Que tudo isso é inaceitável, também.
Mas não deixa de me incomodar, também, com a forma como os meios de comunicação e o tribunal da internet — em perfis no Twitter, no Instagram, etc — tem tentado corrigir toda esta situação denunciando e cancelando indivíduos (chefs, restauradores, profissionais da área) por seu mau comportamento. Sei que esse tipo de ação gera consciência coletiva e isso é importante. Mas a pergunta teria que ser: onde isso nos levará? Colocar um alvo em um indivíduo — ou apenas alguns — para responsabilizá-lo parece, pra mim, uma tentativa de buscar apenas a culpabilidade (que, de novo, precisa ser atribuída), mas sem querer mirar na solução. Acho que estamos todos meio míopes. E termos falado tanto sobre o fechamento de um restaurante que só ocorrerá em 2024 é a prova de como precisamos melhorar nosso olhar.
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Bom, ainda está por aqui? Já que todo mundo disse tanto e tão exaustivamente sobre o assunto, achei por bem deixar aqui trecho de uma entrevista que fiz com René Redzepi há um ano, onde ele já defendia algumas das ideias que tem divulgado agora. Estou sempre na defesa que temos que ouvir o máximo para criar nossas próprias opiniões. (Depois me conta a tua!)
No palco da premiação dos 50 Best, no seu discurso você disse que mais do que ter o melhor restaurante do mundo, o mais importante era ter o melhor restaurante para os empregados. Tem conseguido?
Não posso falar por eles, mas vejo que temos tido um melhor ambiente de trabalho. A maioria das cozinhas em que eu já trabalhei sempre tinha muita raiva. O sistema de brigada, herança da organização militarista, funcionou por muito tempo, mas se mostrou muito falho, e necessita um retrabalho de 100% de como organizar uma cozinha de uma maneira diferente, como refazer todo o estilo de gestão. Acredito que estamos passando por uma mudança transformacional em nosso setor como um todo. É uma mudança necessária que precisa acontecer, mas que vem com uma incrível quantidade de complicações, provações e turbulências. Não é interruptor de luz que um clique vai mudar todo o nosso setor com horas de trabalho justas, ordenados em boa média e um ambiente relativamente livre de estresse onde todos administram bem as relações. Isso não vai acontecer de um dia para o outro porque nossa indústria foi construída sobre um sistema militarista. É um sistema baseado em ordenados baixos porque os alimentos têm que ser os mais baratos possíveis. Não conheço ninguém no nosso ramo que não tenha medo de aumentar os preços, principalmente agora. Não importa o que tu faças, porque se tu aumentas um pouco que seja as pessoas acham que estás a roubar-lhes.
É uma indústria em que há muita confusão entre preço e valor.
Exatamente. Não importa se tu estás a comprar um pastel de nata ou uma refeição no Noma, a comida que consumimos é barata, porque ela cobra sempre um preço muito alto, seja no custo de uma relação de trabalho muitas vezes injusta, seja uma árvore ou um lago que estão a pagar o preço para comermos, uh, barato. Estou a falar sobre o nosso sistema de valores. Não sei como fomos parar nisto. E talvez seja por uma ideia de abundância de recursos. Talvez um dia, quando de repente tu abrires a torneira e a água não fluir livremente 24 horas por dia, talvez aí comecemos a perceber as coisas. Porque a comida é chave de mudança para a maioria dos problemas que temos em termos de saúde e meio ambiente. Mas hoje ela exige um grande custo financeiro e uma grande transformação. E vivemos esse dilema como indústria. Não estou a tentar justificar a má gestão, a misoginia, porque deveria ser imperativo dizer que não aceitamos essas coisas, que se comece no mínimo por tratar bem uns aos outros. O facto de se ganhar pouco e trabalhar demais não pode ser justificativa de nenhum desses graves problemas, é claro, mas precisamos de uma mudança estrutural. Se pensarmos na restauração, é um setor em que não há dinheiro, como há em outras indústrias, como cinema e tecnologia.
E como é possível fazer essa conta fechar?
Se não for com o aumento dos preços dos alimentos, sinceramente não faço ideia. Se queremos ter mais empregados, uma melhor gestão de recursos humanos, maiores ordenados e menos horas de trabalho, precisamos de uma configuração financeira totalmente diferente para poder fazer essa indústria andar. Acho que a tecnologia poderá nos ajudar muitíssimo no futuro, mas agora não temos como evitar um aumento dos preços. Os preços dos alimentos em todos os setores vão subir.
E, então, como você tem trabalhado para tornar o negócio mais sustentável para seu pessoal e também financeiramente?
Durante a pandemia, um dos principais momentos foi me perguntar: ok, chegamos a este ponto, estamos com 18 anos, e agora, onde queremos estar nos próximos 18? Para alcançar o que queremos — aumentos de ordenados e menos tempo de trabalho para a equipa — precisamos de novas receitas, e criamos um setor de desenvolvimento de negócios para aumentá-las seguindo nossos preceitos de inovação, sem precisar ter que vender pizzas congeladas. Há alguns anos temos nos dedicado em nosso laboratório a criar fermentações, vinagres, e os clientes perguntam destes produtos. Criamos o Noma Projects [uma linha de produtos criados pelo Noma para se ter em casa, com os primeiros lançamentos, duas variedades de garum, já neste inverno]. Estamos a apostar todas as nossas fichas e esperamos que ele nos ajude a chegar onde queremos daqui a alguns anos.
Visite nossa cozinha 🍳
Juro que não vou colocar links do Noma! Para a CN Traveler, escrevi sobre como Portugal se tornou um celeiro para restaurantes vegetarianos de alta cozinha. E onde vale a pena provar essa tendência.
Do outro lado do Atlântico, conto no Público por que São Paulo, mais do que uma capital gastronômica, se transformou no maior radar da América Latina sobre tudo aquilo que vai à mesa: cozinhas de imigração, um olhar para o futuro e um público sempre muito exigente podem ser algumas das repostas para essa posição que a cidade, prestes a completar 469 anos, conquistou.
Garfadas da semana🍴
Por que é tão difícil ser aceito como alguém que simplesmente não bebe? [Huffington Post]
Ainda sobre o tema (sobre o qual tenho pensado mais, talvez influenciado pelo Dry January), o que podemos aprender sobre consumir álcool com mais atenção e consciência? [VOX]
Uma raça de vacas uma vez extinta está voltando à natureza — e muito prestes a regressar ao nosso prato [Gastro Obscura]
Por que, afinal, os chocolates produzidos nos EUA são tão “nojentos”, como diz a Arwa Mahdawi. Aqui, ela tenta explicar [Guardian]
Como o pão se tornou um símbolo da luta contra a inflação e a crise energética na França [UOL]
Sim, os robôs-garçons já estão mais próximos de nós do que poderíamos supor [La Vanguardia]
Chicken or pasta? Como a comida sai do chão para te alimentar nas alturas: uma investigação muito interessante [NYTimes]
Conhecida como uma zona de abrigo para terroristas, Pankisi é, na verdade, um oásis da cozinha muçulmana que se manteve na Geórgia. Linda reportagem! [Saveur]
Quando a comida que comemos nos diz sobre quem somos? Um livro sobre a culinária chinesa espalhada pelo mundo tem algumas pistas [The Washington Post]
Você assistiu The Menu e ficou pensando se aquele hambúrguer realmente podia ser uma forma de redenção? Bom, aqui a receita para poder tirar a prova [People]