Quem somos nós na fila da vacina?
E por que precisamos defender que os profissionais da alimentação tenham prioridade
Uma dentista que se especializou em fazer botox, uma biomédica que trabalha com fertilização in vitro em clínicas particulares, uma fisioterapeuta que se converteu à massoterapia e um médico dermatologista.
O que eles têm em comum é algo que, na última semana, os algoritmos das redes sociais se esforçaram para me mostrar: as notificações de postagens desses conhecidos posando para a já definida "selfie do ano”.
Descrevo: um pedaço de papel com as bordas verdes preenchido a mão em primeiro plano e, numa perspectiva mais aberta, um sorriso ensaiado num misto de satisfação e superioridade (raras as vezes, escondido por uma máscara). Para os incautos seguidores, no entanto, o que importa mesmo é poder ler: AstraZeneca ou Coronavac na coluna de "fabricante", e a partir disso tirar suas conclusões e fazer seus comentários: “Linda e imunizada”, “Parabéns!”, “👏🏻✨👏🏻”.
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Eu não percebo bem a ordem de prioridades dos governos num momento como o que vivemos — pudera, estou longe de ser um especialista em saúde. Mas na falta de definições bem mais claras, abre-se sempre o flanco para interpretações dúbias e condutas moralmente muito discutíveis (ainda que por vezes legais).
Se pensássemos na população mundial como um pelotão de guerra com os ombros expostos à espera da salvadora ferroada, como vocês organizariam o vosso exército? Médicos e enfermeiros dos cuidados intensivos e de hospitais em geral sempre à frente, motoristas de ônibus e professores logo ali na terceira bateria, massoterapeutas com suas placas de eletro-estimulação lá no final? E onde estariam os agricultores, transportadores de alimentos, atendentes de restaurantes na sua percepção?
Para alguns governos, em algum lugar bem mais à frente, antes mesmo da ala dos dentistas exibindo placas de clareamento dental. Na cidade de Nova York, a prefeitura acaba de atualizar a lista de pessoas elegíveis à vacinação, incluindo os trabalhadores da indústria de restaurantes: garçons, cozinheiros e entregadores já podem ser imunizados, junto com taxistas.
Parece-me ter bastante lógica a decisão: não sei qual a margem de óbitos dos massoterapeutas e dentistas que trabalham em seus consultórios particulares, mas um estudo publicado no início do mês pela Universidade da Califórnia mostrou que os trabalhadores da alimentação e da agricultura estão em maior risco de morte por Covid-19 entre os adultos em idade produtiva.
O estudo, que analisou os óbitos de trabalhadores essenciais entre 18 e 65 anos, descobriu que os cozinheiros de linha correm o maior risco de todos, mais do que os operadores de máquinas de embalagem, operários da construção e até, quem diria, enfermeiras.
Na Califórnia, graças a dados levantados por estudos com este, “trabalhadores agrícolas e de alimentos” (incluindo aqueles dos restaurantes) foram considerados um grupo essencial que deve ser o próximo na fila para a vacina — já que as mortes no setor aumentaram mais de 39% desde o início da pandemia, contra 22% da média geral de trabalhadores.
Se levarmos em consideração de que forma esses profissionais, como os entregadores de delivery, por exemplo, estão particularmente vulneráveis ao trabalharem como autônomos (ou “empreendedores individuais", pfff) sem garantia de renda ou benefícios de saúde, a lógica faz ainda mais sentido, uma vez que, ao ficarmos em casa, passamos a demandar muito mais de seus serviços.
Assim como dos trabalhadores confinados nos frigoríficos para abater e preparar animais que compramos nas gôndolas para cozinhar o jantar. No ano passado, esses espaços foram grandes focos de surtos em diversas partes do mundo, da Alemanha ao Canadá. Trabalhadores doentes em matadouros significaram encerramento de instalações em todos os cantos, com a maior falta de abastecimento de carne no mercado em anos (sem contar a eutanásia de centenas de animais e os abortos forçados, mas isso é outro assunto).
No Brasil, um estudo do pesquisador do IPEA Ernesto Galindo comprovou uma evidente relação entre o crescimento exponencial de casos de Covid-19 na região Sul e vínculos de emprego no setor frigorífico, cruzando dados de infecção de cidades com plantas de produção de carne na região (que concentra cerca de 45% da mão de todo o setor). Ter que produzir a nossa comida coloca esses profissionais numa grave vulnerabilidade que nem sempre enxergamos.
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Ou seja, se seguimos comendo frango nas refeições, indo ao supermercado fazer compras e pedindo aquele hambúrguer no delivery devemos concordar que o trabalho feito por esses trabalhadores sejam mesmo mais essenciais que uma massagem modeladora. E defender que tenham acesso prioritário à vacina na frente de outros grupos de profissionais, sim.
Supermercados e restaurantes são locais coletivos e públicos, e as vacinações partem (ou deveriam partir) sempre desse pressuposto: os interesses de muitos em detrimento aos de alguns. Comer é um bem coletivo, irrestrito, indispensável para todos nós. Então, se calhar, a fila do pão deveria importar mais que a fila da drenagem linfática.
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PS: Prometo que na semana que vem volto com um tema mais adocicado. É preciso contrabalancear essa amargura com um pouco de açúcar, né, senão vão falar que eu ando difícil de engolir.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Num ano desafiador para a restauração, a comida de rua feita pelos vendedores ambulantes em Cingapura se tornou um Patrimônio da Humanidade pela Unesco.
MAL PASSADO
👎🏼 Parece que a Covid-19 não é a única praga a afetar os restaurantes: o ambiente tóxico das cozinhas profissionais parece estar longe de ser curado.
Visite nossa cozinha 🍳
Nesta semana, escrevi sobre como os restaurantes decidiram hibernar frente ao inverno de confinamento no Hemisfério Norte.
Uma reportagem sobre como a pandemia aumentou a pressão sobre a saúde mental de chefs e de profissionais da restauração.
Garfadas da semana🍴
Toda a riqueza da culinária judaica em sabores e tradições em um livro, ao que parece, imperdível [Guardian]
O incrível ferreiro que transforma antigas bombas chinesas em utensílios de cozinha [Atlas Obscura]
Como vencer o tédio na hora de cozinhar [Eater]
Jantar “com as galinhas” pode te ajudar a salvar os restaurantes [Paladar]
Como os sommeliers estão tentando se reinventar com a pandemia [The Washington Post]
O (não-)debate sobre comer na área interna dos restaurantes em tempos de pandemia [New Yorker]
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