Quem precisa de tantos prêmios?
A gastronomia no palco e a geopolítica de estrelas e estatuetas
Escrevo essas linhas ao mesmo tempo que tento fechar a minha mala para uma viagem à Espanha, onde mediarei dois painéis com cozinheiros, jornalistas e personalidades da gastronomia no The Best Chef Awards, que este ano chega na sua sexta edição e que, em pouco tempo, se converteu em uma importante premiação no meio. A premiação elege os 100 melhores chefs do mundo a partir de uma lista prévia com 200 concorrentes, votados por chefs e especialistas espalhados por todo o globo.
A temporada pós-pandêmica (já se pode dizer isso?) tem sido intensa nos palcos gastronômicos. E a cada ano, novos prêmios surgem, se tornam mais relevantes. Nem sempre é fácil acompanhar, nem mesmo para um jornalista que cobre a área. La Lista, OAD, 50 Best, Michelin, Gault Millau, além de muitos outros guias e premiações locais, regionais, que têm ganhado certa projeção.
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Quando, em 2002, o elBulli se tornava “o melhor restaurante do mundo” no topo máximo dos 50 Best, até então uma lista que tinha surgido tímida pelas mãos de uma revista inglesa, a Restaurant, o prêmio não tinha ainda se convertido no que grande parte da mídia chama de “Oscar da gastronomia” (comparação que eu, particularmente, rejeito). Mas tratava-se de uma premiação pequena, que nos anos seguintes ganhou muita força, colocou restaurantes de todo o mundo (dos EUA à Dinamarca) no pódio e hoje, 20 anos depois, se tornou talvez o mais eminente prêmio do setor.
E que abriu caminho para muitos que vieram — e eles vieram! — depois. Quando o World’s 50 Best surgiu, o mercado da gastronomia ainda era dominado pelo quase exclusivo Guia Michelin, que começou como uma estratégia da famosa indústria de pneus francesa para levar mais clientes pelas estradas do país e evoluiu para uma prestigiosa marca no universo gastronômico, que indica ainda hoje (a partir de uma cotação entre uma e três estrelas) quais os restaurantes valem a visita — ou até, quem sabe, o desvio.
“Há muitas mais premiações e listas hoje no mercado. Ao trabalhar com um restaurante, também pensamos em como posicioná-lo melhor a partir delas. É facto que muitas têm ajudado chefs e estabelecimentos a se posicionarem em um cenário cada vez mais global”, afirma a relações públicas italiana Manuela Fissore, que trabalha com restaurantes como o Lido 54, na Itália, e o Tresind Studio, em Dubai — ambos bem posicionados em listas e prémios.
Os prêmios podem ser vistos como uma resposta institucionalizada — e monetizada, claro — da cultura de “likes” que dominou as redes sociais. Em que o reconhecimento de um bom cozinheiro é mais medido pelos seguidores que ele tem do que eventualmente pelo trabalho que desempenha. Nenhuma crítica específica, aqui: na sociedade da desatenção, é preciso converter as coisas — e pessoas — a escalas mais mensuráveis: seja em número de curtidas seja em “melhores do mundo”, “top 1”, ou qualquer outra escala de valor competitivo, que sobreponha uns em relação a outros.
O próprio The Best Chefs soube aproveitar o poder de exposição da internet (e dos chefs) para se catapultar no mercado. Hoje, quando os próprios cozinheiros e restaurantes criam muitíssimo conteúdo em suas contas, o reconhecimento é medido em algoritmos e seguidores.
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Fato é que os prêmios estão se alastrando: o Michelin, por exemplo, integrará, até o final do ano, mais de uma dezena de regiões e cidades à seu portfólio (entre Dubai e Miami, por exemplo), em uma tentativa de se regionalizar para se tornar ainda mais global e relevante. O 50 Best também lançou uma lista especial para a região do Médio Oriente e Norte de África (a exemplo do que já faz para Ásia e América Latina desde 2013). Ao buscar atividades mais locais, essas premiações conseguem ampliar seus ramos de atuação e manter-se em renovação — algo importante para não ser esquecido.
Mas questiono se há mesmo espaço e relevância para tantos prêmios surgirem no panorama internacional e regional. “Já há muitos prémios e listas, mas novos devem surgir à medida que o próprio setor se torna mais profissionalizado”, aposta Joanna Slusarczyk, uma das idealizadoras do The Best Chef. Se compararmos com o mundo do cinema ou da literatura, por exemplo, muitos são os reconhecimentos internacionais e nacionais destas áreas, uma prova de que há muito que pode ser feito também na gastronomia. “Penso que somos um motor de divulgação e de ajuda para este setor, o que os ajuda em termos de negócios, principalmente depois da pandemia, em que muitos restaurantes e cozinheiros sofreram tanto”, ela explica.
Do ponto de vista do consumidor e de quem sai para comer, segundo Slusarczyk, as listas podem ajudar muito, à medida que geram maior atenção da mídia especializada e da imprensa em geral, o que ajuda a dar a conhecer novos restaurantes e divulgar conceitos que, sem elas, não chegariam a tantos consumidores. “Também penso que guias e premiações ajudam a traduzir as tendências e movimentos da gastronomia a um público maior. As pessoas querem um aval sobre onde escolhem comer. E o reconhecimento de especialistas pode ser um excelente termómetro”, ela conclui.
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No final de 2021, em uma entrevista com o chef René Redzepi, quis saber dele, que já esteve tantas vezes nos topos de listas e premiações, como ele via esse movimento. Na altura em que conversamos na cozinha do Noma, ele falava do topo do ranking do 50 Best, com seu restaurante tendo sido eleito o melhor do mundo naquele ano. “Obviamente uma pessoa não vai trabalhar todos os dias para ser o número um do mundo ou obter três estrelas Michelin. Se esse é o seu objetivo final, você se perde. Mas nós temos essas coisas que queremos alcançar, sabe, e esses prêmios são uma excelente ajuda”, ele me disse.
"Tipo um molho especial?”, perguntei. "São muitas e muitas camadas dele! Mais clientes vêm até nós por conta deles. Por exemplo, nós estamos sentados para essa entrevista, há todo esse “factor extra” que acontece. Embora todos nós saibamos que uma pessoa não consegue, por exemplo, encontrar o melhor restaurante do mundo, porque é uma ideia individual e subjetiva, no final do dia, é um prémio que importa muito, porque impulsiona muitas coisas”, ele respondeu.
Para tentar explicar seu ponto de vista, ele trouxe à conversa uma metáfora interessante: “Eu digo que é como construir uma pirâmide nos velhos tempos: estamos com grandes pedras em nossas costas a subir e, de repente, alguém constrói uma escada rolante e podemos fazer uma parte desta longa jornada com este empurrão. É definitivamente uma grande ajuda. Até para nós, que já estamos aqui há 18 anos e já estivemos no topo por cinco vezes. É e sempre representará umas camadas a mais”, ele conclui. Aquelas que podem fazer enorme diferença nas receitas — especialmente financeiras.
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Esqueça (pelo menos por uns instantes) os pastéis de nata: para um doce português mais autêntico, é preciso seguir para o sul de Lisboa, rumo ao litoral, e devorar uns claudinos. Minha reportagem sobre o tradicional doce no Eater.
Independência? Não na mesa: para o UOL, escrevi uma série de reportagens sobre a relação Brasil-Portugal em ocasião do Bicentenário da Independência: da influência portuguesa na nossa gastronomia aos brasileiros que estão mudando a cena em Portugal.
Garfadas da semana🍴
Além dos prêmios, fica a pergunta: qual a influência dos influencers no setor de restaurantes? Com até 10 mil dólares por um post, parece que ela é muito maior do que muitos imaginam [LA Times]
Como um restaurante de comida de povos indígenas se tornou o melhor novo restaurante dos EUA [The New Yorker]
Como o Starbucks criou uma cultura do café gelado, que tem ameaçado o consumo das xícaras quentinhas pelo mundo [NY Times]
Os dedos de linguiça do Rei Charles foram parar nos açougues do mundo todo, até a Nova Zelândia [Folha de S. Paulo]
A torta basca virou um sucesso muito além das ruas de San Sebastián: o furor com o doce chegou até a Turquia, onde é uma febre [El País]
Tudo o que você sempre quis saber sobre gastronomia no metaverso (e não, ainda não se pode comer!) [Eater]
“A única coisa tão americana quanto a torta de maçã é a opressão às pessoas negras”, o Ghetto Gastro mandando a real sobre gastronomia e privilégios [Financial Times]
Ele cresceu em um país em que ama salsichas, mas agora defende dietas baseadas em vegetais para combater a crise climática [CNN]
Os botecos de bairro na arquitetura paulistana, a thread. Excelente análise sobre aqueles bares que há nas esquinas próximas de todos nós [Twitter]
Primeiro fiquei enojado, depois vi certa beleza, depois senti uma dor e acabei ficando pelos comentários. (Minhas horas semanais presos no TikTok são por coisas assim) [TikTok]
adorei a indicação da matéria da eater sobre gastronomia no metaverso - tem vários momentos maravilhosos nela que sempre comento, na linha do 'You have the entire metaverse and you’re going to Chipotle?'. tudo ainda parece tão precário e zero imaginação do lado de lá hahaha, com toda uma ansiedade em criar algo novo mas nada ainda me atraiu. parabéns por essa edição, adorei!