Por linhas tortas
Precisamos saber o que está por trás dos likes e das vaidades que tomaram o mundo da comida
Os jogos sempre acabavam em discussão. Fosse no futebol, fosse no basquete ou na queimada, havia sempre aquela briga infindável para saber se a bola tinha ou não saído da linha. O time que supostamente teria feito o ponto jurava que sim; a equipe oponente garantia de pés juntos que não. Quando havia juiz (e se é ele tinha mesmo reparado no lance), ele preferia não ser muito contundente nas opiniões. Sabe como é, melhor manter a política da boa vizinhança: amanhã ele poderia estar também no jogo. Ninguém chegava a uma conclusão e quase sempre o espírito esportivo era exorcizado ali da pequena quadra que reunia toda a juventude do condomínio. Até pelo menos o próximo dia, quando todos estavam ali de novo para uma nova e promissora partida.
*
Penso muito nessa analogia quando vejo o mundo da mídia gastronômica de hoje, que vai se desenhando dentro de linhas cada vez mais indefinidas. É algo em que me pego pensando muito há alguns meses, toda vez que resolvo fazer scrolling no meu Instagram ou me deparo com textos publicados em pequenos sites e grandes jornais. Há uma mudança grande em curso que não consigo definir ainda se é boa ou má.
São tempos líquidos, em que assessores de imprensa assinam reportagens e fazem críticas a restaurantes concorrentes de seus clientes nos perfis de Instagram; em que donos de agências de comunicação voltadas a gastronomia se tornam influencers a partir de sua posição de privilégio e ganham mais e mais seguidores a cada dia; em que jornalistas aceitam fazer parte de estratégias de comunicação de marcas e grupos de restaurantes e seguir escrevendo seus textos na imprensa.
Como o juiz que escolhíamos para mediar as partidas, não tenho uma análise definida sobre nada disso, e entendo que as necessidades de cada um baseiam as suas escolhas. Também é um axioma básico do pensamento moderno, afinal — tudo se transforma; tudo tem que se transformar. As seções de gastronomia dos jornais minguam, novas revistas especializadas surgem aos poucos, enquanto as redes sociais tomaram para si o papel central do controle de informações e narrativas (blergh!) que definem a forma como nos comunicamos. Fair enough!
*
O que me ronda a cabeça são os objetivos e interesses por trás disso tudo. O que me incomoda é a fogueira de vaidades que incendiou os propósitos — dos mais comezinhos aos morais e éticos — das pessoas do setor, cada vez mais em busca de likes e de conexões, de projeção e de (pequeno) poder.
Vivemos uma era de pluralidade de vozes. Isso é ótimo, claro que sim. Todo mundo tem direito a ter suas opiniões, a escrever sobre elas, a postar nos seus stories o que bem entender. Mas também quero pensar que é preciso ter em conta a responsabilidade que existe por trás de todo o espetáculo. Por trás de cada seguidor, de cada like.
Penso se cada opinião dada em busca de aprovação que leio seria igual se o que existisse diante dos tais críticos fosse o chef, em pessoa, e não uma claque virtual escondida por trás de pequenas telas. Se toda reportagem escrita tem mesmo o objetivo de informar o leitor, de criar nele uma consciência crítica, ou apenas de usar o espaço que se dispõe para agradar pessoas, prestar favores.
Que a configuração do jogo tenha mudado, é parte da evolução das coisas. Mas penso se as regras também mudaram na mesma medida e rapidez. Se o que vale nas táticas e nas jogadas não deveria ainda respeitar as quatro linhas que nos permitem estar aqui, falando de comida e discutindo de forma a tentar fazer desse segmento um lugar melhor. Podemos sempre pensar em expandir estas linhas, claro, mas tenho muito receio quanto elas começam a ficar tortas.
*
Disclaimer: Mais que uma reflexão, este texto também é uma autocrítica, um mea culpa. Esta newsletter esteve adormecida por tantos meses porque eu precisava refletir mais um pouco sobre meus objetivos aqui, por que afinal vale a pena acordar aos sábados de manhã para escrever essas linhas nem tão retas. Andei cansado da peleja, mas uns meses na Espanha com talentos jovens me deram um ar revigorado. Bora para mais um campeonato!
Visite nossa cozinha 🍳
Ao se voltar aos distintos ecossistemas de seu Peru natal, do fundo do mar aos picos andinos a mais de 4 mil metros de altitude, o chef Virgilio Martínez ajudou a dar forma ao movimento da “cozinha hiperlocal”, em que o que existe no entorno tem muito mais valor à mesa do que a melhor trufa vinda do Piemonte ou as mais frescas ovas de esturjão dos mares do Norte. “Caviar é o caminho mais fácil”, diz. Tive a honra de conversar com ele para a capa desta semana da revista E, do Expresso.
O verão está aí (ou aqui, na Europa, com temperaturas acima dos 27 graus) e escrevi sobre por que os highballs são os coquetéis ideais para os dias quentes no Público.
Na Folha, escrevi sobre como o onipresente José Andrés fundou a era dos chefs-ativistas.
Garfadas da semana🍴
Algo vai muito mal no reino da gastronomia da Dinamarca: por trás de uma cena efervescente e excitante, há condições de trabalho precárias, abusos constantes e uma realidade obscura que passa longe da mesa dos clientes, como mostra essa excelente reportagem. [Financial Times]
Como beber igual à família real britânica — e talvez conquistar a longevidade da Rainha [Nossa UOL]
Aqui, a receita do trifle de limão e amaretti que foi a sobremesa oficial do Jubileu de Platina dela: para um almoço monárquico [Paladar]
Do sourdough à inflação, como a pandemia transformou a forma como comemos, afinal? [Eater]
À medida que a invasão da Ucrânia pela Rússia ajudou a elevar os preços agrícolas globais, alguns governos asiáticos restringiram a exportação de produtos que consideravam essenciais para a segurança alimentar doméstica. Isso pode causar muitos problemas nas prateleiras de todo o mundo. [NY Times]
Amantes dos molhos picantes, um alerta: também vai faltar Sriracha nos mercados [Grub Street]
Para Francis Mallmann, “o fogo é a linguagem do silêncio” [Fine Dining Lovers]
Afinal, as cozinhas regionais precisam mesmo “conquistar o mundo” para serem valorizadas? Uma boa reflexão. [New Worlder]
Os últimos produtores de queijo do oeste do Himalaia [Atlas Obscura]
Meu destino gastronómico de agora seria Barcelona: a reabertura do Enigma, o novo restaurante dos chefs do Disfrutar — a cidade volta cheia de gás para mostrar que a pandemia foi apenas um descanso passageiro [Comer / La Vanguardia]