Pensando na morte da galinha
Como a vida editada das redes sociais nos distancia cada vez mais da origem da comida — e da nossa conscientização sobre ela
Ontem o chef mexicano Édgard Nuñez compartilhou um desses videos que se tornaram comuns em plataformas como o Reels (Instagram) e o Tik Tok: uma receita feita desde o principio, com curtas cenas estratégicas a mostrar todo o processo, num videoclipe que não leva mais de um minuto e que deixa o espectador especialmente aguçado ao final.
A estética é de um Chef’s Table caseiro, mas está tudo lá: closes provocativos, a água a ferver, um pincel a espalhar algum tipo de glaze dourado sobre a pele quente, as chamas do fogo em segundo plano. “Minha parte preferida da vaca: o rabo”, escreveu ele.
Mas o vídeo causou certa comoção porque o preparo voltava a algumas cenas anteriores e inéditas nesses tipos de redes sociais. À descrição: um rabo da vaca inteiro é posto sobre uma tábua. Um cutelo faz um corte rústico em um pedaço de cerca de 10 centímetros. Depois, um maçarico incinera todos os pelos e a carne é depois esfregada com uma bucha debaixo da torneira para tirar toda a parte preta que ficou sobre a pele. Ao fim, o preparo começa, como o de tantas outras receitas: cozinhar, grelhar, cortar, besuntar, servir.
“Demasiadamente visual”, respondeu alguém. Outros acharam que se tratava de um cachorro, “ou de qualquer animal, menos uma vaca”. Mas o comentário que mais me chamou atenção foi de alguém que escreveu: “Que sádico. Um pouco mais de discrição cairia bem”. Era uma “crítica construtiva”, fez questão de ressaltar.
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A produção da comida é muito mais complexa do que nos deixa ver a plasticidade rápida e manipulada das redes sociais. Mas como consumidores passivos que nos tornamos, que têm tudo ao alcance da prateleira do supermercado mais próximo ou de dois cliques numa tela sempre à mão, nos distanciamos dela. A ponto dela nos parecer estranha, bizarra, “sádica”.
Não importa como a carne chegou até a embalagem, mas é só isso que quero reconhecer como carne: higiênica, limpa, milimetricamente arrumada em uma bandeja plástica. Seu passado — seu preparo — pouco me importam. Enquanto podemos, ainda tentamos disfarçar ou esquecer que nossa cadeia de produção alimentar pode estar respingada de sangue (o que, aliás, é naturalíssimo). Não queremos ser lembrados do sofrimento, apenas comer.
A questão é que esse distanciamento da origem nos tornou extremamente ignorantes sobre como nos alimentamos. Poucas decisões na nossa vida são tão arbitrárias e sem conscientização quanto aquilo que escolhemos comer. Sabemos, ainda que tentemos desvirtuar, que as camisetas que usamos são fabricadas na China ou em Bangladesh, às custas de trabalho análogo à escravidão, muitas vezes realizado por adolescentes e crianças. Está ali na etiqueta, uma lembrança latente, que logo cortamos antes de vestir.
Mas não temos a menor ideia de onde vem o frango que assamos para o almoço de domingo: onde foi criado? A quais condições? Como foi armazenado? De que maneira chegou até o mercado onde o compramos, devidamente plastificado e desprovido de qualquer ideia de vida na gôndola dos congelados?
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A questão é que preferimos não saber. Conhecer o processo prévio da nossa comida (e a morte que muitas vezes está relacionada a ele) antes de chegar ao prato nos causa um estranhamento, e passamos a recorrer ao “cancelamento” comum das redes como se, assim, fosse possível apagá-lo. “Não posso nem pensar que esse animal foi morto, credo. Pode me servir mais uma coxa, por favor?”.
“Toda vez que estamos no sítio e postamos alguma foto de sangue usado no molho pardo (ou cabidela) ou de receita de galinha que matamos ali é uma polêmica”, diz a chef Janaína Rueda. Ela conta que as pessoas costumam comentar coisas do tipo: ‘desnecessário postar o abate’, 'para que esse sangue?’.
“Mas eu fico feliz”, confessa. “Porque está aí a lembrança do exato ponto em que deixamos a indústria entrar nas nossas casas e cozinhas, tornando as pessoas alienadas a ponto de estranharem a morte de um peixe, de uma galinha no sítio", explica. Para ela, é estranho essas mesmas pessoas não se horrorizarem tanto com as condições que as galinhas que costumam comprar nos mercados vivem nas granjas: mantidas em gaiolas, com bicos cortados, empilhadas uma sobre as outras e sobre seus próprios excrementos.
“De certa forma, perdemos a conexão com a tradição da culinária, o que nos liga ao alimento, o respeito que matar e comer um animal pode significar” Para ela, criar intimidade e manter contato diário com os animais é fundamental para respeitar a natureza de uma outra forma, evitando o desperdício, por exemplo. "Você come, e é maravilhoso, mas não se joga nada fora", acrescenta.
Em prol de uma comodidade cega e ignorante, perdemos muito, a ponto das pessoas se horrorizarem com a matança de uma galinha, com alguém a compartilhar uma foto limpando as escamas e a barrigada um peixe. “Se esse tipo de imagem causa estranheza, é uma prova de que nós estamos no caminho certo de compartilhá-las”, conclui.
*com participação de Ana Mosquera, Carla Harada e Jessica Germano.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 A iniciativa que reúne 3.300 famílias de agricultores do Peru para salvar algumas variedades de quinoa que estão em vias de desaparecer, em um árduo trabalho de resgate de sementes e de conscientização de tradições do campo.
MAL PASSADO
👎🏼 O coronavírus devastou a cena de restaurantes de Londres, com fechamentos e uma crise sem precedentes. Agora é hora de empresários e chefs enfrentarem outra tensão: o Brexit e as muitas dificuldades de abastecimento impostas por ele.
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Apenas uma via de sobrevivência ou modelo que veio para ficar: escrevi sobre as dark kitchens e seu impacto na América Latina para o Fine Dining Lovers.
Minha entrevista para a Identità Golose sobre o Mestrado de Comunicação e Jornalismo Gastronômico que eu estou coordenando no Basque Culinary Center.
Garfadas da semana🍴
Café, doces e patriotismo: o crescimento de cafeterias conservadoras que querem propagar a ideologia dos Republicanos às custas de um pouco de cafeína nos EUA [VOX]
Ainda nos EUA: uma praga de cigarras está em curso no país. Uma boa forma de combatê-las? Comendo-as, ué. [Wired]
A picanha de R$ 1,799 apreciada por Bolsonaro tem razões (tem mesmo?) para custar tanto. [Nossa UOL]
Será que ainda fazem sentido listas como essas? Não sei, mas a CNTraveler elegeu os melhores restaurantes para comer em 2021, quando voltar ao restaurantes pode parecer normal de novo [CNTraveler]
Como foi feita a apuração do NYTimes que denunciou o ambiente tóxico e misógino do Willows Inn. Muito interessante! [NY Times]
A história do Floridita, em Havana, que continua fechado pela pandemia, mas que reúne algumas dos melhores causos que já aconteceram em um bar no mundo [El País]
Essa é a mistura do Japão com a França: um saquê com borbulhas à Champagne com assinatura do Alain Ducasse [Fine Dining Lovers]
Qual o futuro dos restaurantes? Talvez mais espaços externos relacionados com a paisagem urbana, onde podemos também “comer” sazonalmente, apreciando cada estação. [Mold]
Os e-commerce de vinhos parecem ter chegado para ficar (com um providencial empurrãozinho da pandemia) [Washington Post]
Como a H Mart e outras cadeias de mercados asiáticos revolucionaram a forma de comer dos imigrantes nos EUA — lembrando-lhes um pouco do sabor de casa [NY Times]
Que texto! E que título!!
Texto espetacular. Obrigado.