“No Brasil, você sabe que há uma eleição vindo quando topa com fotos de políticos comendo pastel, uma clara tentativa de parecerem mais ‘do povo’”.
O amigo e jornalista da Monocle Fernando Augusto Pacheco está no Brasil para cobrir as eleições e escreveu um pequeno texto sobre como o pastel se tornou uma das maiores representações de um esforço dos candidatos para se popularizarem perante os eleitores: de Bolsonaro a Alckmin, sempre percorrendo as feiras populares com a mão suja de gordura.
Troque o pastel por qualquer outro alimento “do povo” e o efeito será o mesmo: buchada de bode, caldo de cana, pão na chapa no balcão da padaria, tudo para parecer mais mundano. Não é de hoje que a comida tem uma representação muito importante na semiótica política.
Em 2019, a escritora Meghan McCarron escreveu um excelente tratado sobre este tema no Eater, a propósito das campanhas presidenciais nos EUA. A comida não mente, ela defende.
“Não é especialmente difícil para um político habilidoso disfarçar suas verdadeiras crenças, mesmo durante várias eleições, com centenas de planos políticos, milhares de discursos, dezenas de milhares de apertos de mão ou bebês beijados. Eles estão buscando poder e são incentivados a dizer e fazer o que for preciso para nos convencer a dar a eles. Mas é muito mais desafiador mascarar o verdadeiro nojo ao comer ou beber algo – digamos, uma comida ou bebida que seja profundamente significativa para você e sua comunidade. Portanto, talvez não seja tão surpreendente que um teste de autenticidade, para muitos eleitores, seja como um candidato come.”
Falei exatamente sobre isso no meu livro As Revoluções da Comida (Todavia) para defender o ponto de que o que comemos é muito mais político do que crê a vã gastronomia. E com as iminentes eleições brasileiras a dominarem a minha mente nos últimos dias (eu até tinha outro texto pensado para a newsletter de hoje, mas não consegui seguir…), volto ao tema.
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Na sua última edição, a revista Gama traz um especial sobre a nossa relação díspar entre a produção de alimentos e a fome. Em uma das entrevistas, a historiadora Adriana Salay explica que a fome “é uma disputa política” e que, no geral, não há ações efetivas de grande parte dos governos para reduzi-la — ainda que haja exceções. Isso porque pensa-se majoritariamente que a fome é mais uma questão mais estrutural do que política, individual, não coletiva. Diz ela:
“Tem muita gente que ainda hoje coloca isso no âmbito individual, que entende a sociedade como meritocrática. Onde se você trabalha muito você vai chegar lá, se você passa fome o problema é seu, por ineficiência, preguiça e tal. Essa contraposição tem a ver com essas disputas de narrativa. A fome é um projeto político porque hoje a gente tem mecanismos de amenizar o problema profundamente, ainda que não o solucione. Se a gente produz alimento para todo mundo, por que nem todo mundo se alimenta? Já provamos enquanto país que esses mecanismos são possíveis e geram efeitos. Já vimos uma diminuição dos índices da fome, e não é que a gente fez mudanças profundas como a reforma agrária. Houve programas de transferência de renda, aumento real do salário mínimo. São ações dentro do sistema capitalista que se mostram eficientes na redução do índice de fome. Então precisa haver uma vontade política, que não há.”
Da minha parte, costumo acreditar que não pode haver prosperidade onde há fome. Digo como sociedade, claro, como país; mas também de uma forma individual, quase egoísta — um dos motivos que me levaram a deixar o Brasil. Como é possível focar na nossa rotina quando se para o carro no semáforo e há uma mãe a pedir comida para os filhos famintos? Quando um garoto liga para uma delegacia para resolver uma ocorrência que é simplesmente a falta de alimento na geladeira? É impossível ficar indiferente, não se indignar, não se revoltar.
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Na edição de ontem, a Folha trouxe uma reportagem que, para mim, é das mais essenciais sobre política e eleições; sobre posicionamento e escolhas. O jornal enviou 9 perguntas sobre temas relacionados à fome aos quatro presidenciáveis mais bem posicionados, aproveitando que o tema foi tratado com regularidade em discursos e debates, quando há 33 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave no país (muitas disputando ossos e restos de carne).
No link para a reportagem, há as respostas de Lula, Ciro Gomes e Simone Tebet, nas quais as campanhas defendem propostas como restituir o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) para formular e monitorar políticas públicas relacionadas à alimentação, criar programa de renda mínima permanente para o combate à fome, reforçar o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), aumentando o valor per capita do repasse do governo federal para a alimentação escolar, entre outras. A equipe do presidente Jair Bolsonaro não respondeu. Há coisas que nem um pastel devorado na feira entre uma multidão de apoiadores pode esconder.
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Escrevi para o Culinary Backstreets sobre a história da Ana Ferreira e como a paixão dela por uma máquina a levou à Itália e, depois, a inaugurar a melhor “gelataria” do Porto, mudando a cultura da cidade com relação aos sorvetes.
Garfadas da semana🍴
A crise do gás chegou à sua cerveja: empresas de alimentos e bebidas estão com dificuldades de encontrar fornecedores para poder inserir borbulhas em suas bebidas ou congelar suas carnes e pizzas. Nos EUA, algumas cervejarias locais tiveram que suspender as operações por causa da escassez. E há até um vulcão no meio dessa história [Time]
Atenção: é melhor não ler Dom Quixote se estiver com fome [La Vanguardia]
Como escolher um restaurante para jantar pode te ajudar a salvar o planeta? [Guardian]
Ele descreveu 10 pratos do Noma para uma tecnologia artificial que cria imagens irreais a partir de características reais dos alimentos. O resultado é, no mínimo, surreal [Instagram]
Os últimos e sofridos dias de Anthony Bourdain em uma polêmica (e não-autorizada) biografia [NY Times]
Que maravilha: como vending machines estão criando novas oportunidades para produtores rurais na França [Le Monde]
Alô, amantes de vinhos: vocês já podem aceitar que as promoções dos supermercados podem ter coisas boas para suas adegas climatizadas, tá? [Guardian]
A volta do “serviço de mesa”, uma das principais razões de como eu escolho um restaurante [Fine Dining Lovers]
Um livro de receitas inspiradas na estética dos Estúdios Ghibli <3 [Público]
Obrigado pelos insights do texto e dos links.
Quando o leite condensado vira símbolo de um lifestyle, a coisa está muito errada num nível. Essa edição de hoje da news está especialmente maravilhosa pela escolha do tema e como vc abordou. E adorei essa citação: "talvez não seja tão surpreendente que um teste de autenticidade, para muitos eleitores, seja como um candidato come"