O valor dos vegetais
A importante discussão sobre a relevância que damos de batatas e nabos na gastronomia
Caiu como uma bomba no mundo da gastronomia a resenha lacradora do crítico de restaurantes do The New York Times, Pete Wells, desta semana. Muito pelas considerações negativas (e até certo ponto espirituosas, para divertir a massa de leitores e viralizar nas redes) em que ele dizia de beterrabas que tinha provado e que sabiam a produto de limpeza e cheiravam como “um baseado aceso”.
Mas principalmente pelo fato do tema de sua coluna ter sido o Eleven Madison Park que, como Wells mesmo explica, “é um dos restaurantes mais observados do planeta, atraindo a cobertura da imprensa mesmo para seus pequenos ajustes”.
Os holofotes sobre o restaurante do chef Daniel Humm estiveram ligados em 220 volts desde que ele anunciou que finalmente retomaria os serviços em maio, quando o EMP abriria servindo menus com a abolição total de animais — uma jogada corajosa até mesmo para quem já esteve na posição de melhor restaurante do mundo.
Entre muitas considerações, chamou mais minha atenção quando Wells questiona o valor do menu do EMP, que optou em não reduzir o preço cobrado aos clientes, que já lotam a lista de espera do restaurante com meses de antecipação. Diz o crítico:“embora o Sr. Humm raramente fale sobre os resultados financeiros, é óbvio o que acontece quando você continua cobrando US $ 335 pelo jantar enquanto se livra de alguns dos itens mais caros da sua lista de compras, como caviar, lagosta e foie gras”.
Talvez, presumo eu, a ideia de Wells é que, uma vez que tenha deixado de servir ingredientes de origem animal no menu, não poderia haver outra lógica para o EMP senão baixar consideravelmente o valor cobrado aos clientes, ainda que a estrutura faraônica do restaurante — sua enorme equipe, sua invejável carta de vinhos, etc.— tenha se mantido a mesma. (Curioso que ele cite na crítica o Noma, restaurante dinamarquês que alterna seus menus, entre o de caça, o de mariscos e o de vegetais, sem uma distinção considerável de custos: ou seja, os preços variam de acordo com as taxas do país, e não com o “tipo de menu”).
Não questiono se Wells (ou qualquer outra pessoa) acredita que o valor condiz ou não com o menu servido, em termos de “oferecer o que promete”. Mas acho que na matemática dos custos de ingredientes, a equação não é tão cartesiana quanto sua crítica faz parecer, em que apenas caviar e foie gras (e, vá lá, nacos de carne, ainda que servidos em um quartinho secreto) representam os custos altos enquanto castanhas, cogumelos e os melhores legumes orgânicos (bio) valem menos na conta. (Isso sem nem citar as trufas, claro!).
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“Uma vez que bati os preços que pago pelo meu hortifruti orgânico com o preço de um convencional, percebi que há coisas pelas quais eu pago sete mais caro. Aí fui mais adiante e bati meus custos de tudo com o de um colega que trabalha com todo tipo de carne mas não usa nenhum orgânico. Meus custos são bem maiores que os dele e eu tenho certeza que a maioria das pessoas acha que não”, explica Nathalie Passos, proprietária e chef do Naturalie, no Rio de Janeiro.
Na maioria dos restaurantes vegetarianos, os orgânicos são mesmo prioridade dos cozinheiros. Faz sentido: como únicos produtos do menu, é preciso extrair de tomates, abóboras, nabos e batatas os melhores sabores, aromas e até texturas que se conseguir. E quem já fez a comparação do paladar entre orgânicos e convencionais sabe bem do que ela está falando. Não dá para fazer pratos saborosos com legumes, tubérculos e hortaliças insossos, desenxabidos.
O valor de castanhas, grãos e outros ingredientes usados nesse tipo de cozinha também acaba por representar um custo elevado. “Há alguns produtos que realmente saem tão caros quanto algumas proteínas animais, outros porque têm mais desperdício ou então porque se gasta mais tempo para produzir/preparar”, ressalta Nuno Castro, do Fava Tonka, um dos restaurantes pioneiros do movimento de cozinhas com foco em vegetais em Portugal, localizado em Leça da Palmeira.
“Na maior parte das vezes, o food cost anda muito perto como se trabalhássemos com produtos de origem animal”, acrescenta. Em algumas estações, como o outono, os custos podem ainda ser mais altos, com o uso de cogumelos e outros ingredientes. Também os muitos tipos de caldos que Castro prepara em sua cozinha levam horas e horas para ficarem prontos, com valor adicionado de tempo de trabalho (custo de equipe) e de recursos, por exemplo. Fatores que precisam ser somados na ponta do lápis.
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Há, talvez, nessa questão de como entendemos os custos uma evidente desvalorização do que deveria ser a cozinha de vegetais: como se alfaces, beterrabas, favas estivessem em um nível inferior na escala de valor da gastronomia. Ou seja, paga-se dez, quinze vezes mais por um corte de wagyu e por uma lâmina de otoro, mas pagar duas ou três vezes mais por abóboras, pastinacas e ervilhas de boa origem é algo impensável para muitos.
“Tem quem questione, quem diga que ‘para um vegetariano tá caro’. O que isso significa, afinal?”, pergunta Nathalie. “Ser vegetariano não é sinônimo de ser barato, inclusive o contrário, no caso de quem usa bons ingredientes”. Temos, aí, uma discussão importante sobre a percepção de valor dos próprios ingredientes na nossa cadeia de alimentos — e principalmente no mundo da gastronomia, em que culturalmente aprendemos a enaltecer mais os animais que temos no prato do que os vegetais.
Todo mundo quer mostrar que está alinhado à tendência de se comer mais vegetais (conscientes que somos!), de frequentar os restaurantes vegetarianos (ou plant-based 🙄) do momento. Mas poucos são aqueles capazes de os colocarem na mesma escala de valor — ainda que com suas importantes diferenças — de um restaurante que serve mariscos, peixes, carnes em geral. Não falo apenas de preço, falo mesmo de apreciação, de relevância. Enquanto frases como “para um vegetariano, foi um ótimo jantar” ainda andarem pelas bocas, teremos ainda um longo caminho para percorrer.
Visite nossa cozinha 🍳
Na minha estréia no Epicurious, escrevi sobre como a técnica do tempurá introduzida pelos portugueses no Japão ajudou a desenvolver a arte da fritura japonesa, que ganhou o mundo todo (inclusive como uma técnica de cozimento rápido e delicado, como explica a reportagem).
Também tive minha estréia na MOLD, uma revista da qual sou fã: falo de como cientistas dos anos 1960 criaram um projeto para produzir carne em laboratório a partir de petróleo (sim, isso mesmo que você leu).
Na Pauí, conto a história da primeira muda de oliveira que chegou ao Brasil em 1935 e criou raízes para uma revolução do azeite nacional que colhe agora seus frutos.
No Fine Dining Lovers, entrevistei o chef Tomás Kalika para contar como ele quer tornar a cozinha judaica mais acessível.
Garfadas da semana🍴
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Para anotar para a próxima visita: uma lista (com)provada dos melhores pasteis de nata de Lisboa [Boa Cama Boa Mesa]
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Como os carrosséis de sushi (aqueles restaurantes com esteira por onde desfilam temakis e nigiris) podem nos ajudar a desenhar o futuro dos restaurantes “sem contato” [Atlas Obscura]
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Rafael, essa influência dos portugueses no deep-fry pode ser aplicada também ao katsu e até mesmo ao consumo de porco?
Que delícia de leitura para um domingo, fiquei totalmente inspirado. Obrigado