O novo Normal
Voltar a uma ideia simples de normalidade é tudo o que precisamos na restauração agora?
No charmoso centro de Girona, a poucos passos da Catedral da cidade, em uma esquina movimentada e comum, há um restaurante normal. Mesas com tampo de pedra, cadeiras confortáveis, decoração sem extravagância. Sorrisos simpáticos por parte dos garçons e uma atmosfera que parece bastante familiar. É mesmo um restaurante normal. Ali os clientes sentam-se e escolhem de um menu que propõe comidas normais: croquetas de Jamón ibérico, salada de tomates do verão, merluza com amêijoas e endívias na brasa, filé a milanesa coberto com parmesão e acompanhado de tomates e ervas frescas. Na taça, vinhos de produtores locais e de outras partes da Espanha e do mundo. Para encerrar a refeição, um flan de leite de ovelha ou morangos com nata. Tudo muito normal.
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Descontando apenas, talvez, o fato de que quem está por trás do Normal (sim, é esse o nome do restaurante) são três irmãos cujo sobrenome se tornou um símbolo justamente de excepcionalidade no mundo gastronômico. Joan, Josep e Jordi Roca, do El Celler de Can Roca, um dos melhores restaurantes do mundo (e também do meu mundo), tiveram uma proposta de um amigo para abrir um espaço no centro da charmosa cidade onde nasceram e levaram algum tempo para chegar a um consenso sobre o que podiam realizar ali, na esquina entre a Carrer de la Cort Reial e a agitada Carrer dels Ciutadans.
“Pensamos em muitas coisas diferentes: um bar de vinhos, um restaurante que pudesse resgatar as receitas que fizemos em passagens pelo mundo, um espaço para valorizar a comida da América Latina. Até que nos ocorreu: por que simplesmente não abrimos um restaurante normal?”, me conta Joan Roca enquanto bebe sua xícara de expresso duplo colombiano. “Comida normal, em um ambiente normal”, salienta. Vindo de Roca, que ajudou a mudar a cena gastronômica mundial com elaborações cheias de técnica, um domínio do uso do cozimento a vácuo e que, com seus irmãos, criou a primeira ópera culinária do mundo, o que, afinal, esse “normal” significa? “Penso que queríamos resgatar ali o sentido mais primordial de ir a um restaurante”.
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Enquanto esperamos a volta da normalidade — será que ela vem? E se vier, será igualzinha a que já conhecemos? —, sinto que nunca, como agora, tentamos evocar as coisas mais simples, triviais, comezinhas, “normais”. Inclusive na mesa. Não tanto aquela atmosfera sofisticada e auto-consciente demais, nem das narrativas por trás de cada prato (como o chef teve que acordar de madrugada para colher as ervas que temperam a carne que passou horas e horas a cozinhar sob baixa temperatura). Tampouco os lugares onde a comida em si é o assunto principal das conversas, nem dos malabarismos histriônicos que são feitos para nos convencer de que nossas centenas de dinheiros estão mesmo a ser bem investidas.
O que os Roca tiveram boa sensibilidade para perceber, talvez, foi esse novo-velho “espírito do tempo” que a pandemia fez despertar. Que os excessos, os preços, os discursos, os esforços, o trabalho em demasia — tudo isso estava exagerado, fora de tom, nada normal. Que é preciso retomar o sentido de tudo isso: para que, afinal, serve um restaurante? Qual o propósito que eles têm, especialmente agora, em que a realidade parece tudo, menos normal.
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Desde sua invenção como o conhecemos, o restaurante se tornou o luxo possível para uma parte das pessoas, como diria o teórico da alimentação Brillat-Savarin: aquele momento de puro hedonismo, de comer bem, ser bem servido, de pagar a conta e ir embora. O restaurante sempre pode nos levar de volta para uma magia primitiva, um clima de malícia, de prazeres roubados, uma espécie de recuo do mundo. Ele pode — e deve — “passar por uma abordagem poética do nosso ato de comer”, como escreveu o ensaísta Adam Gopnik. Seja em sua forma mais abstrata, elegante ou em sua forma mais elementar.
O que os Roca levaram ao Normal é a mais pura ideia essencial de restaurante que lapidaram durante anos na "roca” do El Celler e que aprenderam com seus pais (também donos de restaurante) desde muito cedo: trata-se sobretudo de bem receber. De fazer com que o convidado se sinta confortável, especial. De lhe oferecer excelentes refeições, de derrubar em sua taça os melhores vinhos e bebidas que puder conseguir, de servir sempre um sorriso (ainda que escondido).
E o El Celler de Can Roca — apesar de toda a camada brilhante e artificial de premiações e listas e estrelas —, na sua essência se volta aos requisitos essenciais que traz desde sua origem na casa “normal” de seus pais, de onde surgiu: é serviço primoroso, é comida tecnica e criativamente alentadora, é o melhor serviço de vinho, é uma seleção de rótulos apurada, é, sobretudo, hospitalidade, essa palavra tão em falta nas mesas e salões. No setor de restauração, isso é (ou deveria ser) o normal de sempre. Qualquer coisa que tire o foco de servir bem o cliente é excesso, aresta, despropósito. E é algo que eu já não estou mais disposto a engolir.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Quem precisa de uma corrida espacial quando no nosso planeta metade da população sofre com efeitos da fome e nem 5% dela foi vacinada contra a maior pandemia da história? Aparentemente os milionários americanos. Mas depois de levar sua fálica nave Blue Origin ao limite do espaço, Jeff Bezos anunciou a doação de 100 milhões de dólares ao projeto World Central Kitchen, do chef José Andrés, que tem como objetivo alimentar as pessoas em situações de dificuldade. Pelo menos isso.
MAL PASSADO
👎🏼 Uma profunda investigação mostra a dominação de mercado e o poder político das grandes corporações da indústria alimentar sobre o nosso hábito de comprar comida. Um seleto grupo controla mais de 80% dos produtos à venda nos supermercados e mercearias. É um ultraje e voltarei ao tema na próxima newsletter.
Visite nossa cozinha 🍳
Os chefs que levam a cozinha de seus países na mala quando resolvem abrir um restaurante: de um mexicano em Londres a um indiano em Dubai, contei no Fine Dining Lovers a história de alguns deles.
Garfadas da semana🍴
Na nova normalidade, valem menus inacessíveis que podem chegar a custar 800 dólares?? [Eater NY]
Quando você descobre por evidências técnicas que os fogões de indução são melhores que os a gás e meio que se convence da sua realidade na Europa [The Washington Post]
O desserviço dos vendedores em mercados municipais: na Madeira, uma equipe de reportagem alemã descobriu frutas com açúcar e preços mais altos para turistas [Público]
E se a nossa dieta fosse realmente personalizada para cada pessoa? [The Economist]
Se a Tailândia é longe do Brasil, a Itália também é [Instagram]
As ilhas do Mediterrâneo têm alma de vinho [El País]
A delicadeza e a contenção de açúcar da confeitaria japonesa [Nossa UOL]
O NYT ensina por que devemos amar os transgênicos — e levanta uma polêmica de um tema sempre controverso. [The New York Times / Instagram]
Anthony Bourdain e o deep fake: como Roadrunner usou inteligência artificial para colocar na boca do ídolo foodie palavras que ele nunca disse [The New Yorker]