Na longa e irrefreável curva da evolução humana, 1,5 milhão de anos são equivalentes a uma curta fração da nossa vida. O equivalente, vá lá, à nossa adolescência: aquele período que se inicia com a repentina percepção de que não somos crianças e que acaba antes mesmo de estarmos prontos para agirmos de fato como adultos. Pois foi nesse “brevíssimo” espaço de tempo que o cérebro humano, tal como o conhecemos, desenvolveu-se rápido demais: triplicou de tamanho (chegou a 1,4 mil cm³, o volume de uma bola daquelas usadas na ginástica artística), deixando para trás na corrida evolutiva nossos primos primatas, tal como os gorilas e orangotangos, com seus cérebros que se mantiveram do mesmo tamanho durante milhares e milhares de anos.
Acumulamos 86 bilhões de neurônios no córtex cerebral — algo inatingível para qualquer outra espécie sobre a Terra — que nos permitiram avanços extremos e inéditos: melhorar nossas capacidades de raciocinar de modo lógico, criar tecnologias, pensar no futuro, estudar a nossa própria espécie (e as outras) e nos deslocarmos para onde quisermos — até mesmo para fora do nosso próprio planeta. O hardware mais avançado de todo o mundo animal devidamente instalado dentro de nossas caixas cranianas. O último lançamento em processador de sinapses.
Parece unânime hoje que o ponto determinante para esse salto na nossa evolução foi a capacidade que adquirimos de cozinhar: algo que a nossa espécie, e somente ela, desenvolveu com habilidosa destreza nesses mais de um milhão de anos pra cá. (Ainda que um estudo realizado há três anos no Santuário de Tchimpounga tenha mostrado que os chimpanzés possuem certas habilidades cognitivas necessárias para cozinhar, entre elas o gosto pelos alimentos cozidos, uma dose de paciência e capacidade de prever — mas isso não fez deles cozinheiros, como nós.)
E essa nossa capacidade surgiu antes mesmo de descobrirmos o fogo. Cozinhar, no sentido mais amplo e genérico possível do termo, indica qualquer transformação causada em um alimento antes de ingeri-lo — justamente com o objetivo de facilitar a sua ingestão. Isso significa que começamos a “cozinhar” quando nossos ancestrais desenvolveram as primeiras ferramentas feitas de pedra, ainda no Paleolítico, que os permitiu arrancar as peles dos animais, dilacerar sua carne, cortar vegetais ou até esmagar raízes que encontravam. Todo tipo de pré-processamento antes da ingestão, portanto — o ato de manipular o alimento em vez de comê-lo cru, in natura. O homo só se tornou sapiens porque aprendeu a ser culinarius.
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A constatação desenvolvida acima é obra da neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, que levou mais de uma década de estudos dissecando, medindo e contando as células de cérebros de mais de trinta espécies distintas para concluir (entre muitas outras coisas) que a grande vantagem humana sobre as outras espécies constituiu-se nesse providencial truque evolutivo: cozinhar.
Com cabelos levemente ondulados na altura dos ombros e expressivos olhos castanhos quase sempre emoldurados por óculos de armação sem aro, Suzana tem fala baixa e pausada e responde sempre de forma objetiva e bastante sucinta. Os anos como professora adjunta no Instituto de Ciências Biomédicas (icb) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e a chefia do Laboratório de Neuroanatomia Comparada na mesma faculdade a ajudaram a desenvolver o lado, digamos, pedagógico de lidar com os alunos com os quais trabalhou desde 2004 — até se mudar, em 2016, para a Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee, onde hoje é professora associada dos departamentos de Psicologia e de Ciências Biológicas, que abrigam seu novo laboratório.
Ainda que com melhores condições e mais recursos hoje nos Estados Unidos do que tinha no Brasil, o trabalho dela continua sendo essencialmente o mesmo dos tempos do Naco — o acrônimo com que foi batizado informalmente o seu laboratório brasileiro e que, pela sua atividade, carrega até uma certa dose de ironia a respeito do que era feito ali: ao contrário dos métodos tradicionais de contagem de células, que trabalham com cérebros cortados em fatias finas “tal qual carpaccios submilimétricos”, como ela diz, Suzana e sua equipe usavam uma maneira própria que ela desenvolveu para chegar nos resultados que queria: dividiam os cérebros (de elefantes, tigres, girafas, jacarés…) em pedaços maiores (os tais nacos) e os misturavam a uma substância química até que se transformassem em uma “sopa” — “mas não a do tipo que se pode comer”, brinca — para então contar as células.
Anos de cortes com o facão na massa cerebral que tem uma textura próxima a de uma barra de manteiga — e até mesmo com um fatiador industrial de frios que ela também comprou para facilitar a tarefa, daqueles comuns em padarias de onde saem finas fatias de muçarela ou salaminho hamburguês — permitiram que Suzana chegasse a uma técnica bastante precisa de contagem de células dos cérebros: a tal sopa, embora destrua as células, preserva seus núcleos, o que facilita a apuração final, e ainda permite diferenciar quais são os neurônios. Foi a contagem mais certeira que ajudou Suzana e sua equipe a entender por que, afinal, cozinhar mudou radicalmente o jogo da nossa evolução.
Pelas contas, nossos 86 bilhões de neurônios — e não 100 bilhões, como frequentemente é apregoado em muitos livros de neurociência — e nosso corpo médio de setenta quilos exigem um consumo energético de muitas calorias por dia: cerca de 2500, no caso de um homem adulto. Se não tivéssemos aprendido a cozinhar e mantivéssemos a dieta crua dos nossos primos primatas, teríamos que passar diariamente 9,5 horas nos alimentando: ou seja, buscando alimento, mastigando e o digerindo. Nunca teríamos nos tornado quem somos.
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O texto acima é a reprodução de um trecho de As Revoluções da Comida, meu novo livro editado pela incrível Todavia que tem publicação agendada para o dia 7 de maio — quando estará nas “melhores casas do gênero” (livrarias e lojas virtuais). Não poderia deixar de compartilhar em primeira mão uma parte aqui nessa newsletter, onde estão os melhores leitores do mundo.
Escrever um livro é uma tarefa complexa para um escritor: passei quatro anos “gestando” a obra, numa procrastinação eterna por achar que nunca estaria pronto — será que está? Aí, quando finalmente vem a publicação, somos tomados por um desejo paradoxal: quero que ganhe o mundo, claro que sim, mas não sei se o preparei tão bem para isso. Será que serão os leitores condescendentes com as minhas muitas falhas? Torço para que sim.
No momento, estou que nem um moleque que ganhou aquele carrinho de Natal por muito tempo desejado. Agora, só quero tê-lo nas mãos, brincar com ele nos limites do meu quarto. Depois eu enfrento os garotos lá fora…
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Para os interessados, o livro já está em pré-venda, por este link e em outras livrarias online. Lembrando: prestigie as editoras e os pequenos livreiros quando puder ;)
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Marcus Rashford, mais conhecido como o craque do Manchester, se uniu a um chef estrelado para criar uma startup que ajuda pais a cozinharem de forma mais saudável e barata (com receitas gratuitas, como os já famosos “fish fingers”) para seus filhos: “não quero que ninguém tenha que dormir com fome”.
MAL PASSADO
👎🏼 Precisamos falar sobre a segurança dos entregadores de delivery (ou estafetas): com o aumento de pedidos na pandemia, muitos acabam assaltados, baleados ou até mesmo mortos. Os índices aumentaram muito nos últimos meses, segundo dados dessa reportagem do Defector. Por não terem vínculos com as empresas, “não são oferecidas a eles proteções comuns a outros funcionários contratados, como a compensação dos trabalhadores, seguro de saúde ou licença médica. Quando eles morrem na execução de seu dever, suas famílias são frequentemente deixadas sem nada”. Pergunto de novo: qual nosso papel nisso?
Visite nossa cozinha 🍳
Os novos caipiras: escrevi para o UOL sobre quem são os brasileiros que decidiram fincar suas raízes no campo — na contramão do que é um movimento global de urbanização — para viver de plantar os alimentos que consumimos.
Na mesma toada, na capa deste sábado da Fugas (Público) falo sobre uma nova revolução que brota nas cidades: as hortas urbanas deixaram de ser apenas espaços de plantio para ganhar protagonismo no plano de desenvolvimento de muitos municípios. Mais do que uma reaproximação com os alimentos, elas trazem de volta um sentido de comunidade que estava adormecido.
E por fim, os chefs brasileiros que estão ganhando projeção internacional ao comandarem cozinhas de restaurantes premiados em diversos países do mundo, de Singapura à Bélgica.
Garfadas da semana🍴
O livro que resgata o espírito aventureiro e desbravador com que Anthony Bourdain via o mundo da comida pelas mãos de sua assiste mais próxima. [Eater]
A Netflix está tirando do forno uma série sobre as muitas influências afro-americanas na culinária dos EUA. [Netflix]
O sabor do luto: a autora Michelle Zauner faz um livro de memórias sobre a perda da mãe em que a comida é o fio condutor. [The Atlantic]
Será que a moda do vinho em lata vai mesmo decolar? [Observador]
Com quantas bolhas se faz a cerveja perfeita? Um estudo científico tratou de responder a questão. [La Vanguardia]
Ontem, o astronauta francês Thomas Pesquet foi ao espaço pela primeira vez com comandante de um voo e, para isso, o chef estrelado Thierry Marx lhe preparou algumas “quentinhas”, entre elas um bife cozido por 8 horas, uma torta de amêndoas e uma inovadora receita feita a partir de tomates cereja congelados. [Fine Dining Lovers]
Los Angeles vai limitar o uso de descartáveis (entre guardanapos e outros n itens) nos restaurantes da cidade [LA Times]
Depois de terem vivido o mercado online na pandemia, chefs estão mais prontos para voltar ao mundo real de seus negócios com uma ajudinha da tecnologia [The New York Times]
Sex shop, que nada: em tempos de confinamento, clientes vão às mercearias para buscar algum prazer ao apalpar pêssegos maduros, inalar o aroma de ervas frescas e saciar um desejo multisensorial. É sério! [Grubstreet]
A caribenha que está colocando um pouco mais de atitude nos vinhedos de Champagne [CNN]
Guerra fria: um casal inventou uma forma de consertar as máquinas de sorvete do McDonald's que estavam obsoletas. Com isso, compraram uma batalha que envolve ameaças e processos com a rede de fast food [Wired]
Serve it Safe: a startup que quer acabar com toneladas de lixos gerados pelo delivery propondo um serviço de reutilização de embalagens [The Spoon]