O futuro é ancestral
Do Peru ao México, a gastronomia olha curiosa para os povos originários — e o muito que pode aprender com eles
Há muito tinha na minha lista visitar o MIL, restaurante construído nos altiplanos do Vale Sagrado peruano, pelos chefs Pía León, Virgilio Martínez e sua irmã, Malena Martínez. O espaço também é o QG do Mater Iniciativa, projeto de investigação de produtos e técnicas culinárias do país, agora mais centrado em desbravar os Andes e a relação de sobrevivência (e de pura reverência à natureza) que os incas estabeleceram ali.
O caminho entre Cusco e Urquillos, e depois entre Urquillos e Moray, onde o MIL está instalado, já era um presságio do que estava por vir. Enormes manchas verdes de plantações de milho branco (o melhor do mundo, gabam-se os locais), o rio Urubamba a serpentear as montanhas, as lhamas nas planícies douradas a carecer de chuva.
A primeira visão quando se chega ao restaurante são os “muyus”, os famosos terraços redondos onde os incas puderam se aproveitar dos diferentes microclimas criados por distintas altitudes para suas experimentações agrícolas no decorrer dos séculos. As diferentes partes do terreno em socalcos podem ter variações de temperatura que chegam a 15ºC de diferença. Hoje, é ali que a equipe do MIL maneja dois hectares para o fortalecimento de sementes e resgate de espécies antigas.
Logo depois de um chá de coca, para dar conta da altitude, Efraim, morador da comunidade de Misminay, nos recebe para uma exploração do entorno: com a enxada, arranca do solo raízes escondidas, coleta ervas, abre bagos de frutos para falar de propriedades medicinais, de cores que dão vida aos fios tosquiados de lhamas e ovelhas transformados em cobertores e ponchos. Impressionante como seus ancestrais conheciam por séculos os benefícios de plantas só depois comprovados pela ciência. Uma relação empírica, simbiótica.
Efraim nos conta de ritos, demonstra técnicas, exibe conhecimento sobre tudo o que toca. Tudo no MIL mira o passado para tentar construir algum futuro na gastronomia com os saberes que ficaram restritos aos povos dali. É lindo que as coloridas batatas servidas em um dos momentos do menu (de 8 passos) sejam assadas e servidas na mesa em um pequeno forno de argila comestível conhecido como huatia, em quéchua, e que é capaz de extrair todo o dulçor e o sabor dos tubérculos com as cinzas e o calor da brasa que aquece o solo.
Do famoso sal de Maras (a poucos metros dali) ao chocolate feito com a raríssima variedade de cacau chuncho, as técnicas desenvolvidas nas receitas servidas aos visitantes se inspiram nos conhecimentos passados de geração para geração entre os povos das montanhas. É uma cozinha, sobretudo, de resgate.
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Na pequena Halachó, vilarejo no interior do estado de Yucatán, no México, o chef Wilson Alonzo inaugurou o Yaaxche, um restaurante e centro etnogastronômico para valorizar a cozinha yucateca. Além das receitas, ele fala de ritos e símbolos que definiram a cultura dos maias, um dos povos pre-hispânicos mais importantes das Américas.
Mais do que servir receitas típicas de seus ancestrais, como a cochinita pibil (o famoso porco marinado em achiote e cozido em um buraco feito no chão, com o calor das brasas) e o xec (uma salada fresca com laranjas, habaneros frescos, coentro e zapote), ele quer promover sua cultura através de workshops e aulas para os visitantes.
“É uma forma de difundir as nossas receitas, ao mesmo tempo que oferecemos uma maneira mais intensiva de quem nos visita conhecer profundamente nossas tradições”, ele diz. Entre oficinas de culinária e visitas a mercados, Alonzo quer mostrar as sofisticadas técnicas de cozinha dos maias, como o cozimento com pedras quentes.
Em um dos momentos que estávamos cozinhando, sua avó, Raquel, de 82 anos, se une ao grupo de jornalistas e começa, ela mesma, a comandar os preparos. Depois de colocar feijões, salsa picada e cebola em uma panela de barro, pede que alguém lhe traga as pedras quentes mantidas sobre brasas para finalizar a receita. Com a ajuda de um pano, aloca as três pedras sobre a mistura de ingredientes, cobre com um pano e, depois, com uma tampa de pedra. "Precisamos de tempo para que o calor ajude a terminar de cozinhar tudo”, diz, enquanto aprecia uns goles de cerveja.
O sabor é levemente defumado, os grãos cozidos à perfeição — nem duros demais, nem excessivamente moles para se desfazer antes da dentada. “Por muito tempo, fizeram-nos crer que nossa cozinha era menor, menos importante. Mas meu trabalho aqui é apresentar toda a riqueza de uma população ancestral que já cozinhava com muitos processos antes de ser colonizada e ignorada”, explica Alonzo.
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Muitos são os projetos hoje a olhar para as cozinhas ancestrais, para o que podemos aprender com os povos originários — que é muito! No eixo eurocentrista pelo qual a gastronomia orbitou nos últimos séculos, não havia espaço para valorizar as técnicas de cozinha primitivas, para olhar com curiosidade para produtos, para receitas. Aprendemos que válidas são as técnicas francesas, que bons produtos são italianos, espanhóis, que o modo de cozinhar dessas comunidades era antigo, rudimentar, ultrapassado. Como se fosse possível construir futuro sem o passado.
É um momento bonito no mundo gastronômico, quando chefs decidem aprender com aqueles que sempre estiveram ali — e que muitas vezes foram enxotados, rejeitados, escravizados, e até mortos, sem ter o direito de manifestar suas culturas, suas crenças. Os povos originários formam pouco mais de 6% da população mundial, mas protegem, agarrados a suas tradições, mais de 80% da biodiversidade do planeta.
Mais do que aprender com eles, que podem nos ajudar a inovar em técnicas nas cozinhas (e criar algo realmente original em um universo dominado por manteigas, cremes, vácuos, fornos combinados…), a verdade é que dependemos deles para manter a única linha que nos liga ao que o planeta um dia já existiu e que trabalhamos arduamente para arruinar. Mais do que uma reverência, os povos originários carregam a nossa única salvação.
Visite nossa cozinha 🍳
Pela primeira vez, 10 restaurantes brasileiros estão entre os 50 Melhores da América Latina: uma prova da evolução da cena gastronómica do país. Fui para o México escrever sobre isso para a Folha de S. Paulo.
E, afinal, como é comer no melhor restaurante da América Latina, que está na corrida para ser o melhor do mundo no ano que vem? Para o UOL, escrevi sobre a minha mais recente refeição no Central.
Estou monotemático, eu sei, mas é que as recentes viagens à América Latina renderam muitos conteúdos (e uma certa ausência por aqui, desculpem): para o Fine Dining Lovers, entrevistei o Virgilio Martínez que garante: “chegou a hora da América Latina conquistar seu espaço na gastronomia".
Na minha coluna para a Viagem & Turismo falo do momento dos restaurantes-destino.
Garfadas da semana🍴
Afinal, o que esperamos de um wine bar? [NY Times]
O Mac’n’Cheese levou mais tempo para ficar pronto do que os 3,5 minutos prometidos na embalagem. Ela decidiu, então, processar a marca [The Washington Post]
As recentes escavações do Coliseu, em Roma, encontraram vestígios das alimentações feitas no subsolo da arena mais importante do mundo: figos, uvas, cerejas, amoras, nozes e muito mais. Parece que os gladiadores eram mesmo saudáveis. [BBC Brasil]
A baguete francesa, um das mais importantes razões para visitar a França, tornou-se Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO [UOL]
Os moradores das favelas brasileiras têm aprendido a usar os alimentos de forma integral — e dizer não ao desperdício [El País]
Em Paris, um restaurante italiano que usa ingredientes vindos de uma associação que comercializa alimentos apenas de fazendas antes dominadas pela Máfia [Le Monde]
Da série “jantares que eu gostaria de participar”: comer arroz jollof na casa da escritora Chimamanda Ngozi Adichie [T Magazine / NYTimes]
Você nunca mais vai abrir vinho do mesmo jeito (spoiler: e nem vai precisar de um abridor!) [Twitter]
Ainda sobre os vinhos: existe “vinho que é melhor para restaurante” e “vinho que vale a pena tomar em casa”? [The Wall Street Journal]
E lembra quando o Merlot era febre? Por que é que algumas uvas saem de moda? [The Guardian]