Enxugando gelo
Entre tsunamis, baleias, geleiras glaciais e o meteoro que nunca chega — mas que deve ser precedido a qualquer momento por uma nova pandemia misteriosa
Sinto que a “onda latina” vai virar tsunami. Há um imparável orgulho que tomou a gastronomia latino-americana que só deve escalar no futuro próximo. Falo isso depois de visitar Colômbia, Brasil, Chile e Peru (com um pulo na Argentina) em um intervalo de um mês. Orgulho é a melhor representação de empoderamento quando bem canalizado, é aquela lufada de ar que aspiramos para encher o peito e erguer a cabeça. Provoca mudanças, rege transformações. Desde que os chefs do continente decidiram olhar para seus quintais, uma energia pulsante tomou as cozinhas dos restaurantes locais. Há um imprescindível resgate não apenas de produtos (tubérculos, grãos, ervas, etc), mas sobretudo de técnicas. De aprender com os povos nativos que definiram a cultura dos diferentes países da região muito antes da chegada dos colonizadores europeus. Muito antes que nos quisessem ensinarimpor que técnica só existe se o corte for à brunoise e houver o preparo de um roux, já fazíamos tucupi e criávamos os mais avançados processos de fermentação — hoje tão em voga. A América Latina deu ao mundo a batata, o milho, o tomate, a mandioca e tantos outros produtos que se tornaram a base da alimentação mundial. E pode dar muito mais: a riqueza de ingredientes ali é algo desconcertante. Na era do “hiperlocal”, poucos continentes podem oferecer tanto em variedade e novidade quanto a América Latina. E com a vantagem dessa vez de contar ela própria as histórias e os métodos por trás de cada um deles, sem apropriações ou distorções.
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Enquanto o derretimento das calotas polares é visto com grande alarde pela comunidade científica, os endinheirados dos Emirados Unidos não medem esforços para terem seus coquetéis feitos com gelo à base de água de geleiras naturais. Uma startup na Groenlândia está vendendo gelo glacial de fiordes a bares de coquetéis em Dubai. Em um lugar no qual o líquido essencial é escasso, o gelo é na maioria das vezes feito de água mineral que chega aos Emirados em garrafas de plástico (de uso único) de muitos outros países direto para as forminhas que produzem os cubos translúcidos que refrescam os copos. Mas já não são suficientes para saciar a sede de exclusividade das elites. Os gelos glaciares dos fiordes turbinam os coquetéis dos bares em Dubai justamente porque são água sólida em seu estado mais puro, não possuem bolhas (a pressão atmosférica de milhares de anos expulsou todo o ar contido das geleiras), o que permite que derretam mais lentamente. Tudo para não estragar a experiência de quem pode pagar algumas dezenas de euros para tomar um Negroni do alto de um arranha-céu construído sobre areia com vista para a aridez do deserto.
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Quando não leio sobre comida, leio coisas como a história do Hvaldimir, uma baleia beluga que escapou do cativeiro e se tornou uma celebridade global no porto de Hammerfest, uma das cidades mais ao Norte do mundo, onde interage com as pessoas e até resgata celulares que caíram na água inadvertidamente. Agora livre, ele tem dificuldades em viver como uma baleia selvagem. Já consegue se alimentar sozinho, mas se coloca em risco em águas mais quentes, onde corre perigo no “emaranhado de ambições humanas conflitantes, algumas nobres, outras equivocadas, quase todas distorcidas por uma compreensão inadequada”, como escreve Ferris Jabr, em uma das melhores reportagens que li nos últimos meses. Como ajudá-lo a viver na nova realidade é algo que causa controvérsias entre governos, cientistas e ativistas. O jornalista conta que muitos defensores gostariam de ver Hvaldimir reunido com belugas selvagens ou pelo menos transferido para uma reserva natural. Um final feliz de filme de Sessão da Tarde para uma baleia que conseguiu escapar de um regime de enclausuramento. “Mas reabilitar uma baleia anteriormente em cativeiro não é nada como o salto triunfante para a liberdade em “Free Willy”; é mais como ajudar uma vítima gravemente traumatizada de sequestro a se reintegrar na sociedade”. O texto é pura poesia para esses dias em que a natureza nos da lição da sua grandeza sobre a pobre raça humana.
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Há um alerta vermelho mundial de que uma nova ameaça à saúde pública global está no ar. Nos últimos cinco anos, uma sombra silenciosa tem pairado sobre a comunidade científica: a da incontornável chegada da Doença X. Já estudada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) desde 2018, ela pode representar uma pandemia pelo menos uma dezena de vezes mais letal que a da Covid-19. Não se trata (ainda) de uma doença real, mas sim um nome fictício criado pela OMS para identificar o risco de surgimento de uma nova doença infecciosa altamente transmissível que poderia acometer milhões e milhões de pessoas. Uma fervilhante discussão sobre a necessidade de agir globalmente para evitar um cenário pandêmico ainda mais devastador do que o causado pelo SARS-CoV-2 já toma conta de reuniões mundiais, como no recente Fórum Econômico Mundial. Um grupo de especialistas de todo o mundo têm a missão de identificar agentes patogénicos que possam desencadear a nova doença que pode parar o mundo mais uma vez. Com surtos do vírus de Marburgo a chegar a novos países africanos, as alterações climáticas cada vez mais incontroláveis e a degradação ambiental a criar um novo caldeirão fervilhante de patógenos no planeta, não deve demorar para acharem algo muito preocupante. Minha dica: comecem a procurar pelo prato.
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Na minha coluna do UOL, contei como, ao criarem um perfil no Instagram para fazer uma campanha por peer pressure, dois amigos conseguiram que o McDonald’s relançasse o cultuado McFish no Brasil.
Na VT, falo sobre Aveiro, a charmosa cidade portuguesa, através de seus produtos e pratos mais clássicos, pelos olhos do chef Ricardo Costa (The Yeatman**).
Garfadas da semana🍴
Enquanto na Espanha distribui sóis e prêmios para o mundo da gastronomia, no Peru, a Repsol derrama petróleo no mar e impede os pescadores de fazerem seu trabalho e trazerem peixe para a mesa da população [Salud con Lupa]
Ao que parece, 2024 vai ser o ano dos jantares em casa [Eater]
Das tripas aos corações: as vísceras e os miúdos oferecem verdadeiros manjares para a gastronomia [El País]
Afinal, o que determina um autêntico hambúrguer americano e um restaurante criado para reproduzi-lo em seu melhor? [The New Yorker]
O melhor vinho do Brasil é mesmo feito em Minas Gerais? [O Globo]
Afinal, quem alimenta os imigrantes nas grandes cidades? [Grubstreet]
A comida caribenha através de suas ilhas: os chefs que querem mostrar toda a diversidade de suas cozinhas [The New York Times]
Conhecer a história da gastronomia de San Sebastián através de 5 de seus pintxos, pelas lentes (e pela a pluma caprichada) do Andoni Luis Aduriz: isso é que é luxo [El País]