Feat, colab, parceria; muitos são os nomes. Na gastronomia, costuma-se dizer “a quatro mãos” — ignorando, claro, que é preciso de muitas mais delas para fazer um jantar acontecer… Geralmente, as mãos que contam são apenas as dos que aparecem nos posters ou nos compartilhamentos do Instagram, os chefs famosos. (Mas isso talvez seja conversa para outra newsletter).
Eu sempre torci o nariz para o formato: como na indústria musical, muitas vezes, a ideia é só aproveitar o público de cada um dos cozinheiros para se promover também por outras paragens e divulgar o trabalho para quem ainda não o conhecia — com a esperança, oxalá, de que os clientes queiram visitar os restaurantes depois.
O jantar em si, na maioria das vezes, é sem graça. Quem “joga fora de casa” já começa em desvantagem, tendo que se adaptar a uma nova cozinha, ingredientes diferentes e, eventualmente, a cultura culinária de um país distinto. Quem recebe também não se sai muito melhor: fica limitado a mostrar menos “lances”, restringe o seu próprio trabalho para dar espaço ao convidado.
Poucos foram os jantares “a quatro mãos” que fui que realmente impressionaram por mostrar algo inovador, pensado em conjunto, em que os pratos de um e de outro se complementam. Jantares colaborativos deveriam ser como um bom duelo de tênis, quando, em favor do jogo e do talento dos atletas, torcemos mesmo é para a bola, que exige deles novas jogadas, adaptações. Já estive, felizmente, presente em partidas assim (que acontecem, infelizmente, tão esporadicamente como a final de um Grand Slam).
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Se pensarmos na raíz dos jantares colaborativos, eles podem ser boas oportunidades para os chefs que realmente estão dispostos a ampliar seus horizontes culinários. No entanto, poucos são os optam por sair de suas zonas de conforto juntando-se a chefs de um gênero diferente para se familiarizar com um novo conjunto de ingredientes, técnicas de culinária e desafios de cozinha.
Em busca de facilidade, virou praxe que muitos cozinheiros já tragam na mala os pré-preparos feitos todos em suas próprias cozinhas, deixando muita pouca margem de improviso para incluir um novo tempero, uma distinta técnica que possam vir a conhecer em um restaurante mais tradicional ou um mercado — quando os visitam.
A verdade é que esses eventos deveriam mais ser vistos como uma oportunidade de se aprender técnicas diferentes dos outros chefs, para que se possam adaptar eventualmente em seus restaurantes. As viagens e as trocas podem abrir o repertório de muitos cozinheiros com novos conhecimentos culinários — algo que, cada vez mais, os comensais parecem valorizar.
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Deve ser por isso que os jantares “a quatro mãos” nunca estiveram tão em alta. Um reflexo, talvez, de uma retomada pós-pandêmica em que muitos cozinheiros estiverem em reclusão forçada em suas próprias cozinhas, sem grande intercâmbio com seus colegas. Para os clientes, é uma forma de correr atrás do tempo perdido em quase três anos e aproveitar jantares para conhecer mais e uma cozinha de cada vez.
Novembro começou promissor nesse sentido: o cultuado chef sueco Björn Frantzén viaja a Dubai (algo raro é ele deixar a cozinha de seu restaurante homônimo de três estrelas) para cozinhar com Gregoire Berger no Ossiano, em um menu focado apenas em frutos do mar. Uma semana depois, o basco Andoni Luis Aduriz (Mugaritz) vai cozinhar com o dinamarquês Rasmus Munk na cozinha megalômana do Alchemist naquele que seria, para mim, o jantar do ano (e que infelizmente vou perder).
Há poucos cozinheiros tão inovadores no cenário hoje como os dois e colocá-los juntos em um jantar parece dessas boas ideias que esse tipo de formato carecia. Outro exemplo é a colaboração entre o franco-argentino Mauro Colagreco que vai receber o italiano Enrico Crippa para um jantar no Mirazur. A cozinha baseada nas fases lunares de um e a do uso de vegetais de sua proprios horta do outro parecem mesmo fazer muito sentido juntas.
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O formato tem tentado se reinventar — ainda bem. Acabei de voltar de uns dias em Udine, no Norte na Itália, onde cinco dezenas de cozinheiros de todo mundo se reuniram na pequena cidade italiana para cozinharem juntos: as combinações de chefs (entre Massimo Bottura, Dabiz Muñoz, Alex Atala, Ana Rôs, Yashihiro Narisawa, entre muitos outros famosos) renderam 72 (!) jantares em menos de uma semana.
A questão está mesmo na curadoria, na capacidade de um profissional (geralmente externo) de perceber como dois estilos de cozinha podem funcionar muito bem quando expostos juntos, como um pode complementar, provocar, dar um bom passe ao outro. Um dos melhores jantares reuniu três chefs italianos, dois deles a frente do restaurante Venissa (em Veneza) e outro que comanda o Tèrra, em Copenhagen.
Sustentáveis e essencialmente vegetarianos, a troca entre os profissionais foi tamanha que era impossível (sem ler no menu) saber qual prato era de quem. Da Dinamarca, Valerio Serino trouxe ingredientes (de dill a frutas) que foram incorporados por seus colegas em outros pratos. Do jardim veneziano deles, o casal também apresentou produtos que o colega decidiu incluir em seus pratos. “Foram dias muito proveitosos de provar ingredientes, testar receitas. Tínhamos uma ideia do que queríamos fazer, mas adaptamos todos os pratos quando Serino chegou”, conta Chiara Pavan, uma das chefs do Venissa.
Para ela, através destas colaborações, é possível aprender técnicas diferentes dos outros chefs, que depois pode adaptar em seu restaurante, além de abrir seu paladar a outros produtos locais.. “Meus clientes sempre esperam por novas técnicas que trago de viagens”, diz. Também são uma maneira de criar sessões de networking com colegas que pensam da mesma forma ou até de construir relacionamentos com pessoas com filosofias parecidas. “Já combinamos de passar uns dias na cozinha do Serino em Copenhagen”, ri.
Quando há chefs com a mesma filosofia culinária, a coisa tende a funcionar. Ou seja, quando os jantares acontecem mais por afinidades— de cozinhas, de técnicas, etc — do que apenas pela estratégia promocional de juntar dois grandes nomes em prol dos likes que isso pode gerar. Há uma tendência se desenhando desse movimento se tornar mais a tônica na cena gastronômica atual. Mais jam sessions, menos feats. Melhor pra nós.
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A pizza é pop: de uma enciclopédia modernista a séries de TV, a receita napolitana nunca esteve tão em alta na cultura popular. Escrevi sobre isso para o Nossa / UOL
Na Folha de S.Paulo, conto como os operadores de cruzeiros estão investindo para criar verdadeiros restaurantes com “nível Michelin” sobre a água a fim de atrair uma clientela mais exigente — e endinheirada.
Falando em alto mar: para muitos cientistas, a alimentação do futuro pode estar nos oceanos, como escrevo para a BBC Brasil. Isso porque eles poderiam nos ajudar a dar uma resposta para o crescimento populacional de uma forma mais sustentável — já que falhamos em cultivar alimentos no solo.
Garfadas da semana🍴
Supostamente prático, comprovadamente econômico (em termos de energia); mas não nos enganemos: o microondas é “um poço da depravação culinária” [The Guardian]
Pátios, pérgolas, áreas externas. A pandemia levou restaurantes e prefeituras a construírem espaços nas ruas para abrigar os clientes em tempos de distanciamento social. Agora, com o seu fim declarado, o que serão dessas construções que rapidamente, desordenadamente e (provavelmente) permanentemente dominaram as ruas? [Curbeb / New York Magazine]
Depois dos carros híbridos para salvar o meio ambiente, chegou a vez dela: a carne híbrida [VOX]
“Nossa, mas você só come fora, todo dia em novos restaurantes, que vida boa”, me dizem. Vou passar a responder como o (meu ídolo) Miguel Esteves Cardoso: “Para descobrir uma coisa boa é preciso comer muita porcaria” [Público]
No Lola, da chef Kamilla Seidler, em Copenhagen, o menu é criado por todos os cozinheiros: um indiano, uma boliviana, uma dinamarquesa. “Parte da filosofia era garantir que pudéssemos enfatizar que era um trabalho de equipe, e que todos trazem algo para a mesa" [Fine Dining Lovers]
Halloween está aí: a mulher que busca receitas nos epitáfios das lápides de mortos para cozinhar em casa — “muitas delas são de morrer", diz [The Washington Post]
O que aconteceu com a popularidade da IPA, a cerveja que repentinamente todo mundo ama odiar? [Punch]
Pela banalização do caviar: um guia para degustar a iguaria em todas as ocasiões, até em cima de batatas chips (!) [The Wall Street Journal]
Um livro de receitas para sobreviver ao fim do mundo: de como assar um alien a produzir um uísque à base de urina [Gastro Obscura]
O McDonalds está trazendo de volta o McRib pela última vez DE NOVO — e está mais que na hora de deixarmos essa relação tóxica de lado [Yahoo Noticias / The Washington Post]
Tudo o que você sempre quis saber sobre o tucupi [New Worlder]
E quatro comidas que podem ajudar a diminuir as suas emissões de carbono, segundo o World Economic Forum [Instagram]