Como se fosse a primeira vez
Os restaurantes pelo mundo voltam a abrir: com isso, nos devolvem parte de nossas vidas que ficaram adormecidas na pandemia
“No entanto, quando penso em momentos felizes, penso sempre em comer fora”.
Adam Gopnik, em The Table Comes First
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Nesta semana, saí para jantar duas vezes, almocei fora outras três e cheguei a tomar uma cerveja sentado em uma mesinha na calçada enquanto observava o movimento da cidade. Para os padrões atuais, posso dizer que minha vida está muito mais próxima do normal do que há três meses, quando uma determinação me confinou em casa por algumas intermináveis semanas.
Na Europa, de onde teclo esses caracteres, muitos países voltaram a reabrir seus comércios e serviços nas últimas semanas: Dinamarca, Portugal, algumas partes da Itália, França... Recém-levantados de mais uma onda que nos fez engolir areia mais uma vez, temos nossos restaurantes de volta, onde podemos regressar em busca de alguma “promessa de motivos puros”, como bem pontuou Gopnik, que já se juntou à esta mesa desde a epígrafe lá em cima.
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A volta aos restaurantes é uma retomada à arena de grande parte da nossa vida social: esses espaços públicos se tornaram parte da rotina das pessoas, o cenário onde muitos de seus momentos particulares acontecem: as celebrações, as confissões íntimas, as lamúrias, por quê não? Eles são um dos pilares da alimentação moderna, nos tiram de um senso de realidade particular e é por isso que ainda nos parecem um lugar tão mágico. A mim, sempre me emocionam.
Poder sentar de novo na mesa de um é quase que recobrar uma parte da vida que ficou adormecida nessa pandemia. Mais: é poder sentir de novo — e quase que se fosse uma experiência completamente nova — o inebriante gosto do hedonismo, da confraternização, da interação social que quase esquecemos que existiam trancados em casa.
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Mas agora que muitos voltam a abrir (e outros brigam pela possibilidade de fazê-lo), o que eles podem (e querem) nos oferecer? Muito se dizia de como a pandemia alteraria a dinâmica dos restaurantes, transformando alguns dos seus conceitos. Claro que muito mudou — da necessária digitalização à uma administração mais ferrenha de cada centavo que entra e que sai — mas a sua essência segue a mesma (ainda bem!).
“Se algo nos deu 2020, foi o reencontro com o sonho da primeira vez, a ansiedade com a qual queremos retornar ao antes”, diz o chef Andoni Luis Aduriz, do Mugaritz, no País Basco. Para a temporada 2021, depois de um ano tão difícil, o que Andoni propõe é entrar no território das “primeiras vezes", com o menu a invocar questões filosóficas do tipo: “Como podemos experimentar algo pela primeira vez?” “O que significa viver ou sentir algo pela primeira vez?” “Quando você viveu algo de forma diferente?” “Quando você valorizou algo pela primeira vez?”
A primeira vez do Mugaritz — que é, na verdade, sua 24ª, em mais de duas décadas em temporadas sempre anuais — tem um primeiro beijo em que o comensal precisa oscular o prato para conseguir provar a receita, ou outras experiências que querem resgatar uma sensação inédita para quem está nas mesas: nossa relação com o leite desde a primeira infância, redescobertas de sabores, uma brincadeira com a origem do ovo e da galinha.
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São tempos novos, afinal, e tentar trazer um novo olhar é parte da experiência que os restaurantes precisam agora oferecer. No seu Kjolle, em Lima, no Peru, a chef Pía León teve uma ideia inovadora para os tempos em que, com tantas fronteiras fechadas, tem sido quase impossível viajar para comer: em menus quinzenais, ela toma “emprestadas” receitas de alguns amigos pelo mundo, criando um jantar que pode estar representado por muitos continentes distintos juntos na mesa.
Em uma mesma noite, serviu pratos do Hiša Franko, na Eslovênia, do White Rabbit, em Moscou, do Atomix, em Nova York, e do Manu, em Curitiba. No próximo, no dia 12 de maio, vai reunir o Disfrutar, de Barcelona, o Quintonil, na Cidade do México, o Don Julio, em Buenos Aires, e o Den, em Tóquio, tudo em uma mesma noite.
“Nesses tempos estranhos, estamos conectando o mundo através da mesa, para não esquecermos que a comida é uma forma de comunhão”, diz ela. E o restaurante talvez seja o melhor lugar para podermos vivê-la em sua plenitude. Que muitos outros voltem logo a reabrir…
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 A Parrilla Don Julio, em Buenos Aires,aproveitou a pandemia para revitalizar uma praça em Palermo que foi transformada em uma horta comunitária que agora reúne os alunos da escola ao lado, os cozinheiros do restaurante e, claro, os moradores do bairro. Quando gastronomia também é comunidade.
MAL PASSADO
👎Crônica de mortes anunciadas: depois de demitir 18 funcionários, um tradicional reduto da cozinha paulistana, a Cantina Piolin, luta para se manter aberta em meio à pior crise de sempre, em mais um exemplo de como a restauração agoniza sem apoio e sem clientes.
Visite nossa cozinha 🍳
No Fine Dining Lovers, falo dos chefs que estão apostando em ingredientes e produtos para nos ajudar a cozinhar em casa, abastecendo nossas despensas e nossas geladeiras.
Tem trecho do primeiro capítulo de As Revoluções da Comida (que saiu ontem, finalmente 🙌🏻), na revista Pessoa.
Garfadas da semana🍴
Enquanto pequenos restaurantes agonizam e fecham as portas, os grandes grupos seguem em expansão, ganhando mais lugar no mercado [Eater]
Por que você realmente precisa de uma régua na sua cozinha? [Serious Eats]
“Uhh, notas graníticas muito interessantes”: como a “mineralidade” se tornou um fenômeno no mundo dos vinhos e propagou a falsa ideia de que ela é tão determinante na taça [The New Yorker]
Os homens que vendiam suas mulheres em troca de cerveja na Inglaterra vitoriana [Nossa UOL]
O jamón do mar criado pelo espanhol Ángel León [7 Canibales]
Ainda sobre tradições espanholas: com vocês, o robô que cozinha sozinho uma paella [CCMA]
5 indícios de que a bolha do delivery está prestes a explodir [Grub Street]
Graças à pandemia, produtores de algas tiveram recorde de produção em anos, criando um verdadeiro boom desses vegetais marinhos [Associated Press]
Linda reportagem sobre como o Ramadã faz crescer o consumo de tâmaras e resgatar uma intricada história de conexão com esse alimento sagrado [Los Angeles Times]
Os engenheiros estão de volta à cozinha: as pastas aparentemente triviais que se transformam em contato com a água fervente [The New York Times]