Comida para chamar de nossa
O que um sanduíche “árabe” criado por um português no Brasil diz sobre a origem das nossas receitas?
Encontrei Mazen Zwawe pela primeira vez em um food park (como convencionou-se chamar qualquer feira de barracas de comida nessa era pós-gourmetização) numa ruela perto da Frei Caneca, na região Central de São Paulo. E o que era pra ser uma simples entrevista para uma reportagem escancarou uma das mais maiores inquietações da minha carreira como jornalista de gastronomia até aquele momento. Zwawe tinha chegado há poucos anos ao Brasil fugido da guerra na Síria. Tentava se estabelecer por aqui cozinhando e vendendo as receitas de seu país natal, se aproveitando de um gosto já estabelecido pela “culinária árabe” introduzida décadas antes por outros imigrantes sírios (e também libaneses a armênios, vale dizer) que chegaram ao Brasil muito antes dele.
Em Damasco, era chef de cozinha e teve um restaurante por três anos em um dos bairros mais populares da cidade, que foi totalmente destruído por um bombardeio em uma madrugada depois que ele já tinha encerrado o expediente. No dia seguinte, quando foi trabalhar e se deparou com seu negócio em ruínas, sabia que não mais podia ficar. Pegou os únicos 100 dólares guardados que mantinha em uma caixa de madeira no seu quarto e veio para o Brasil. “Sabia que tinha muitos sírios aqui, era uma forma de recomeçar...”, disse em português perfeito, ainda que carregado no sotaque, me fitando com seus expressivos olhos escuros – o rosto magro e os cílios avantajados, que deixariam minha esposa morrendo de inveja, só tornavam o olhar mais enérgico.
Aqui, ele começou com alguns eventos até ganhar dinheiro para alugar um estande e participar de algumas feiras de comida na cidade. Depois de três tentativas frustradas – em uma delas, chegou a sublocar um espaço dentro de uma padaria na rua Bresser, no Brás, onde expunha suas criações em uma estufa que lhe rendeu até reportagem em revista –, estava tentando recomeçar, ainda que aquele não fosse um bom dia para isso: o fornecedor tinha errado as letras do adesivo a ser colado sobre a estrutura metálica de sua nova barraca, a ser aberta naquela noite, onde se lia: “Chef Mazen Zwawe, cozinha do Oriente Médio - buffet, festas e eventos”.
Quando percebeu que eu era o jornalista, disfarçou a irritação e me convidou a sentar: puxou e montou em um golpe no ar uma das cadeiras de metal dobráveis que estavam encostadas na barraca, dentro da qual um auxiliar picava uma montanha de tomates. Contou que apostava em alguns pratos menos convencionais ao gosto dos brasileiros, que “só queriam quibes, esfihas e o kebab de falafel”, seu campeão de vendas. A clientela ali, formada por universitários e jovens, pelo que ele tinha ouvido, parecia ser promissora para aceitar o seu desafio: queria ir além, trazer algumas receitas mais tradicionais como o Muhammara, um molho de pimenta sírio originário de Aleppo, a cidade que se tornou o centro e o símbolo mais recente dos conflitos sírios, e o Sujok, que ele me explicou dizendo ser uma carne moída bem condimentada que é amassada e enrolada (tal como uma linguiça, conjecturei), depois servida dentro no pão sírio com tomates e molho de alho. “Tipo um beirute?”, perguntei.
Ele não entendeu a indagação e, com o cardápio na mão, permaneceu em silêncio esperando eu repetir, arregalando um pouco mais os olhos. “Como o beirute, que é muito comum aqui...”, prossegui. “Comem em muitos lugares, é uma comida comum também em Damasco”, ele disse. Eu não falava de Beirute, a cidade, mas do beirute, o sanduíche árabe feito de roast beef, queijo e tomate onipresente em qualquer menu luminoso de padaria, em prateleiras de mercadinhos grab-and-go, nas cantinas das escolas... Ele parecia nunca ter ouvido falar. Expliquei, fiz mímica, simulei o ridículo de agarrar o sanduíche imaginário com as duas mãos: nada. A entrevista prosseguiu, mas algo parece ter ficado entalado sem digerir.
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Talvez não tivesse passado pela Síria, pensei, e fosse um prato típico do Líbano, sei lá, por isso Zwawe não o conhecia. O termo “culinária árabe”, que convencionamos usar, sempre foi muito vago para explicar as receitas servidas nos restaurantes com esfihas, quibes e alguns charutinhos de folha de uva recheados com carne moída: países com culturas alimentares tão distintas colocados sob um mesmo rótulo – propagado, aliás, pelos próprios donos de estabelecimentos, em muitos casos. Mas a conversa tinha me instigado a buscar a raiz do sanduíche, um dos símbolos da imigração dos povos do Oriente Médio ao nosso país, uma conexão imediata numa só mordida. Fui ao Frevo, restaurante que, aberto desde 1956, popularizou o tal beiruth (ali grafado com “th”) e que hoje serve uma dúzia de versões do sanduíche – a mais recente, por exemplo, leva, além do roast beef tradicional, queijo provolone, maionese, bacon, alface e tomate, que eu não saberia caracterizar se como um exemplo da fusion cuisine – o movimento que tomou grandes restaurantes do mundo a partir dos anos 1970, misturando ingredientes do Oriente e do Ocidente – ou se como apropriação cultural.
A família que administra o estabelecimento, que desde que abiu as portas sempre esteve na rua Oscar Freire, mas que ganhou duas filiais no decorrer das décadas, todas nos Jardins, não tem origem “árabe” – o fundador Geraldo, tinha o sobrenome português: Modesto de Abreu. Roberto, seu filho adotivo e quem está à frente do negócio hoje, aos 72 anos, tem descendência italiana em seu sobrenome Frizzo. Bruno Frizzo, neto de Geraldo, foi quem primeiro achou que deveria haver algo a mais na história-lenda propagada em torno do prato icônico: de que seu surgimento se dera em um bar na região da Aclimação quando, ao pedir um bauru (sanduíche feito com rosbife, queijo e tomate, também surgido acidentalmente de um pedido inesperado, vale dizer), foi informado que naquele dia não havia pão francês na cozinha, só pão sírio. Sem titubear, solicitou que fosse feito assim mesmo. Nascia assim, por pura casualidade, um clássico de padocas e lanchonetes de todo Brasil.
Bruno decidiu pesquisar a origem do sanduíche que ajudou a sustentar sua faculdade em Administração – e também das suas duas irmãs, uma advogada e outra publicitária. Ainda que os Frizzo reconheçam que “não foi Frevo que criou o Beirute, mas que esticou suas variações”, como diz seu Roberto, foi talvez ali que ele se tornou ainda mais popular. Em registros ouvidos por seu avô, encontrou uma versão que dizia que os primeiros sírios e libaneses que chegaram aqui, ainda pelo porto de Santos, onde desembarcaram, costumavam se alimentar usando o pão sírio – ou pita, como também é chamado – junto com as refeições, como um suporte para a comida.
Esse pão fino, com duas partes, tipo envelope, é de provável origem Mesopotâmica, há milhares de anos e foi utilizado em todo o Mediterrâneo Oriental, tendo chegado, via Império Otomano, ao Ocidente, de onde se generalizou para o mundo todo. “No Brasil, costuma-se chamar de pão sírio pelo fato de ser usado pelos árabes sírio-libaneses que vieram em grande número para o Brasil", explica o professor Pedro Paulo Funari, professor titular do Departamento de História da Unicamp.
Para o pesquisador em Demografia Histórico da UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos) Oswado Truzzi, que estudou a comunidade sírio-libanesa em São Paulo, a hipótese também faz sentido. “Meu palpite é que o pão sírio é tradicionalmente utilizado na cozinha árabe como intermediário entre as mãos e diversas iguarias, como tabule, coalhada, babaganuch, homus etc. Daí para virar sanduíche, que no Brasil também é comido com as mãos, o passo é pequeno”, arrisca.
Poucos são os registros que provam essa ascendência. E por mais tentador que seja querer explicar a origem de receitas com relatos históricos, o fato é que a maioria delas surge mesmo acidentalmente – como quando juntamos umas sobras da geladeira para o jantar, que resulta invariavelmente em algo surpreendentemente bom. Pesa também o fato de que receitas nem sempre são registradas, catalogadas. No contexto histórico de uma grande cidade como São Paulo, aliás, a cozinha de imigração foi quase toda ela constituída por “acidentes”, por assim dizer.
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Quando os primeiros sírios chegaram à cidade, ainda em 1880, fugindo do Império Otomano, não tinham aqui os mesmos ingredientes para reproduzir suas receitas: tudo era uma adaptação. (Como, aliás, foi toda a cozinha de imigração que se constituiu pelo mundo). Era impossível fazer com que alimentos sobrevivessem às longas viagens da época. Já no novo destino, era preciso usar o que se estivesse disponível para tentar chegar a uma elaboração mais próxima: e na grande parte das vezes, quase nada que pudesse ser reconhecido estava disponível. Foi assim com os japoneses e também com os italianos, para ficarmos em exemplos de colônias que se estabeleceram nos arredores de São Paulo, como os “árabes”.
“Não tenho dúvidas de que foi um acaso. E que fez sucesso porque era uma mistura de pizza e sanduíche”, discorre Roberto Frizzo. “Mais paulistano, impossível”. Ainda que se tente aventar outras possibilidades de sua origem, ao que tudo indica, o beirute é uma criação 100% brasileira, com a única assinatura síria no pão, que nem essencialmente sírio é – o que justifica a conversa atravancada com Zwawe naquele dia.
Tal qual um filho de imigrantes que nasce em outro país e ganha a nacionalidade de onde o parto se dá, as criações gastronômicas seguem uma lógica semelhante. Com a significativa diferença que não poderiam “nascer” fora do contexto em que foram concebidas por seus “pais” em novo território. São fruto daquele lugar, naquele momento, naquelas condições – as mais adversas possíveis para se manter tradições culinárias, aliás.
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Durante a pesquisa e apuração de um livro que escrevi sobre restaurantes com mais de cinco décadas de atividade em São Paulo, me chamava atenção que quase sempre havia filé à parmegiana no cardápio: era um item onipresente, tanto quanto o couvert ou mesmo o cafezinho. Chegava a ser até mais popular que batatas fritas – que aliás, sempre apareciam como acompanhamento para ele. E não apenas nos restaurantes italianos (que, por sua vez, eram maioria – um indício da forte tradição do país por aqui). Mas independentemente de qual fosse o tipo de cozinha: encontrei parmegiana em menus de restaurantes espanhóis (2), franceses (3), grego (1) e até mesmo “árabes” (2). Frequentei sessenta e dois deles em um período de pouco mais de dois anos: o índice de presença do parmegiana beirava os 80%. Um número para brilhar os olhos de um jornalista xereta
Depois do episódio do beirute, me tornei um curioso obstinado das origens das comidas de imigração, um Sherlock Holmes de cardápios (pseudo)estrangeiros, um Inspetor Clouseau de receitas expatriadas, ou quase isso. Mas com o ceticismo de um Hercule Poirot, é claro. Parmegiana, no termo, tem relação com o queijo que é colocado sobre o molho de tomate, que por sua vez recobre o filé mignon devidamente empanado e frito, depois gratinado para o queijo derreter. A isso se dá o nome do famoso prato, e isso é elementar, meu caro leitor. Não é uma alusão à cidade de Parma, de onde ele teria vindo, como muitos pensam. Mas, para mim, era vital entender a influência italiana que ele carrega – se é que carrega. A primeira conduta foi buscar as provas mais incontestáveis: as maiores referências culinárias do termo.
Marcella Hazan está para a cozinha italiana como Julia Child está para a cuisine francesa: ambas mergulharam no mundo das panelas influenciadas pela profissão de seus maridos, escreveram livros que se tornaram as maiores referências de receitas de cada uma das devidas cozinhas e fizeram fama nos EUA – país que já foi mais adepto às culinárias e às políticas migratórias. Marcella é autora de Fundamentos da Cozinha Italiana Clássica, escrito em 1973 (e lançado no Brasil só em 1997), a Bíblia do assunto, e que é chave para entender muito do que se convencionou chamar de “culinária italiana” (que não é única, claro, mas feita de partes, de regiões, de bairrismos que talvez sejam a melhor forma de defini-la).
O volume é uma compilação de receitas, mas também de referências temporais, de axiomas culinários de uma cozinheira rigorosa com suas preparações. E lá não há qualquer menção ou referência ao filé à parmegiana. À berinjela (melanzane), sim: cozida e depois coberta de tomate, queijo e forno – uma receita bastante popular e mais consumida no sul da Itália, ao que ela indica. Mas de filé empanado feito com a mesma “técnica” nada dizia.
O mais afamado por aqui é feito no Bar do Alemão, em Itu, no interior de São Paulo, desde, pelo menos, a década de 1930 – quando o imigrante alemão Adolf Steiner começou a preparar uma versão mais rudimentar da receita em sua padaria, aberta em 1902. Ele era bom de bife e o preparava para seus clientes mais assíduos em um pequeno fogão de duas bocas à querosene que ficava e cima do balcão – onde também embalava os pães. Numa outra panela, fazia um molho de tomate bem caseiro para servir por cima. Já era famoso o bife do alemão ainda nos tempos de Padaria e Confeitaria Alemã. Com o tempo, Steiner passou a incrementar a receita: empanava o bife com a farinha do pão que sobrava na padaria, numa típica influência do schnitzel da culinária de origem germânica – um escalope de carne bem fininho e depois empanado, tal e qual um filé à milanesa (mais frequente feito de porco, na Alemanha, ou de vitela, na Áustria). O sucesso foi tamanho que ele transformou a padaria em um restaurante e bar, nos anos 1960. Ainda hoje funcionando na mesma casa construída em arquitetura a la enxaimel, são servidas 12 mil pessoas por mês no salão de 600 lugares em tempos normais (ou pré-pandêmicos). Nem precisava adivinhar: 80% dos pedidos são do filé à parmegiana, feito com 750 gramas de mignon para servir até 6 pessoas. Apelidado de orelha de elefante, o epíteto não é exagero ituano.
Há outras evidências – de testemunhas oculares (ou seriam gástricas?) – de que o parmegiana tenha nascido mesmo na Cantina 1060, aberta em 1939, e que funcionou por décadas na avenida Rangel Pestana, no Brás. Mas independente da comprovação exata de sua certidão de nascimento, o fato é que a receita evidentemente não veio da Itália. (E que, ironicamente, pode ter sido criada em um restaurante alemão.)
“Há invenções ditas da culinária italiana que a gente não poderia nem dizer de onde vêm. O espaguete à bolonhesa nunca existiu como receita em Bolonha”, me disse o chef Massimo Bottura, o mais famoso representante de seu país no panteão da alta gastronomia mundial – seu restaurante, Osteria Francescana, em Modena, foi eleito por duas vezes como o melhor do mundo na lista 50 Best, a maior premiação da área.
Na capital da Emília-Romanha, sua região natal, o molho é acompanhado de tagliatelle, originalmente. A parmegiana também é uma dessas invenções com nenhuma ligação tradicional com a Itália. Mas é fruto dessa comida de descendentes italianos (ou não) que se estabeleceu aqui e que ganhou fama como tal, por isso se perpetuou como uma receita que Marcella Hazan jamais reconheceria. “É exatamente o prato que melhor simboliza a adaptação de receitas italianas com as matérias-primas e os gostos locais!”, afirma Rogério Fasano, quarta geração da família que marcou seu sobrenome na restauração de São Paulo e símbolo da imigração italiana que prosperou por aqui. Tal como o beirute, o parmegiana também é cosa nostra! Os imigrantes tiveram de se adaptar aos trópicos e muito da nossa comida surgiu desse contato.
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Em tempos em que as discussões imigratórias ganham nova urgência, aliás, é importante lembrar que as correntes de imigrantes foram decisivas para um novo panorama gastronômico mundial, especialmente em grandes cidades, como é o caso de São Paulo, mas também de Nova York, de São Petersburgo, como tem sido cada vez mais em Lisboa. Como seria a comida em cidades como Nova Orleans, Londres, Melbourne – para mencionar apenas algumas – sem os fluxos de imigrantes? Andar pelas ruas sem a oferta de sashimi, tacos, pizza e macarrão? Sem ramen, dosas, yakisoba? Ouso dizer que as hordas de imigração a partir da Primeira Guerra foram, depois das Grandes Navegações, o fato histórico mais importante para termos maior diversidade à mesa. Gente que fugiu de seus países levando na mala pouco coisa, mas que jamais esqueceu a importância dos sabores para se sentirem em casa. Aqui ou lá.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Quando este homem com ELA percebeu que não conseguia mais comer sozinho, ele construiu seu próprio robô para alimentá-lo.
MAL PASSADO
👎🏼 Os proprietários deste restaurante em Lisboa que desobedeceram o lockdown e abriram para um jantar com pessoas sem máscara e sem cumprir distanciamento social — que levou mais de uma dezena de clientes a serem multados, claro.
Visite nossa cozinha 🍳
O que fazem os chefs em tempos de pausa forçada? Criam, planejam, refletem.
Garfadas da semana🍴
Os exportadores de lagostas em Yorkshire que vão ter que abandonar a função depois de 60 anos por conta do Brexit [Guardian]
Graças à pandemia, 2020 foi o ano da pizza para milhares de restaurantes [NYT]
A prefeitura de Madri criou um guia ilustrado para seus restaurantes seculares [Madrid.es]
Dois chefs ensinam os truques para ganhar no jogo nos mercadinhos de comidas e temperos orientais [Paladar]
As cervejarias apenas para membros [Punch]
Comidinhas felizes para abrir um sorriso nesses dias mais amargos [Buzzfeed]
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Que ótima notícia essa sua newsletter, Rafael! Tá muito boa!
Esse texto me lembrou da tese da Silvana Azevedo em que ela fala da parmEgiana e da parmIgiana. Tem um artigo dela aqui, caso te interesse: https://www.revistas.usp.br/italianistica/article/download/168578/160187
Aproveito pra te convidar para assinar a minha newsletter também. Nesse link dá pra ler as edições que já foram enviadas e tb dá pra assinar em "join our mailing list". https://us17.campaign-archive.com/home/?u=3a6c6effff97a0d8a8fe28337&id=c8b700b435
Boa sorte pra nós nessas newsletters, e espero poder seguir trocando contigo!
Abraço,
Flávia Couto