Comida é conflito
Em zonas de guerra ou nas grandes metrópoles, (quase) tudo o que comemos tem origem em disputas territoriais, em lobbies, em confrontos sanguinários
Tenho pensado obcecadamente sobre isso: grande parte da comida que consumimos no mundo hoje tem origem / é consequência de conflitos. Guerras, disputas territoriais, interesses corporativos, confrontos sanguinários… A produção alimentar moderna não conhece a paz.
Nada que tenha a ver com ela nos dias de hoje (com crises climáticas, evasões e lutas pela sobrevivência) envolve a ideia de agricultura romântica dos “pequenos produtores familiares”, da “vida no campo” ou dos clichês que nos querem fazer engolir. Não dá. Não desce.
São terrenos controlados por máfias ou milícias; lobbies de grandes empresas que passam por cima de direitos humanos; guerras prolongadas que perturbaram a produção/distribuição de alimentos em todos os continentes. E que matam de fome milhares de pessoas todos os anos.
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Não consigo mudar a sintonia dos meus pensamentos quando leio notícias como a de que fome iminente em Gaza deve atingir seu auge nas próximas semanas.
O número de pessoas que estão prestes a sofrer com a mais maligna privação alimentar nesta estreita faixa territorial é o maior em gerações. “[O conflito] supera qualquer outro caso de fome promovida pelo homem nos últimos 75 anos”, disse ao NYTimes Alex de Waal, especialista em crises humanitárias e internacionais, autor de "Fome em massa: a história e o futuro da fome".
Após o ataque surpresa do Hamas a Israel em 7 de outubro, o país tem respondido com bombardeios e uma verdadeira “vedação do território” que deixou os 2,2 milhões de pessoas que moram ali sem comida, água e suprimentos suficientes. A situação deve piorar à medida que as ajudas humanitárias não conseguem passar os cercos.
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A morte em massa por fome diminuiu gradativamente da década de 1980 até o século 21. Mas nos últimos sete anos, as crises alimentares associadas ao conflito (como as do Iêmen, Síria e Etiópia) e as decorrentes das condições ambientais e das mudanças climáticas (como na Somália) resultaram na perda de mais de um milhão de vidas. Em Gaza, a questão é ainda mais premente: pessoas que moram lá estão seladas no território sem recurso para procurar comida em outro lugar. Os conflitos sobre recursos como água e terras aráveis só se aprofundam à medida que os recursos se tornarem mais escassos. É uma progressão perversa num mundo que desperdiça 1,3 bilhão de toneladas de alimentos por ano – ou cerca de 1/3 do que é produzido globalmente.
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As coisas que leio sobre isso ressoam na minha cabeça: “A fome é ao mesmo tempo causa e resultado de conflitos. Pode deslocar agricultores e destruir bens agrícolas e reservas alimentares. Ou pode perturbar os mercados, aumentando os preços e prejudicando os meios de subsistência. Neste círculo vicioso, o conflito e a falta de alimentos destroem a própria estrutura da sociedade e conduzem muitas vezes à violência”. Onde não há comida, não há paz.
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Vejo que no Equador as ruas estão desertas, os comércios estão fechados e o centro de Quito, fortemente militarizado. É um país imerso em um "estado de guerra" que enfrenta o poder do narcotráfico sob um clima de pânico e cansaço. Quadrilhas criminosas e traficantes de drogas têm demonstrado sua força em retaliação aos planos do presidente Daniel Noboa de tentar subjugá-los: mais de uma centena de policiais e funcionários penitenciários mantidos reféns por detentos, agressões a jornalistas e inúmeros ataques armados que resultaram em 14 mortes, de acordo com o balanço mais recente.
No portal 7 Canibales, o relato dos donos de restaurantes que, acossados, precisam fechar as portas. E não sabem quando poderão voltar a abrir. É um conflito que deve estrangular muitos negócios, alguns deles gastronômicos. “Os empresários revivem a época da pandemia e começam a encarar a ideia de delivery como uma válvula de escape para a crise que se aproxima”. As pessoas não querem sair. E têm medo de quem pode lhes chegar à porta.
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Busco algum refúgio em Como Cozinhar um Lobo, o livro-panfleto anti-guerra da genial MFK Fisher, que tenho devorado para tentar esquecer as notícias de um mundo decadente: “Acredito que uma das formas mais dignas de que somos capazes de afirmar e reafirmar a nossa dignidade face à pobreza e aos medos e dores da guerra, é nutrir-nos com toda a habilidade, delicadeza e prazer cada vez maior possíveis. E com o nosso crescimento gastronómico virá, inevitavelmente, o conhecimento e a percepção de uma centena de outras coisas, mas principalmente de nós próprios. Então o destino, mesmo emaranhado com guerras frias e quentes, não poderá nos prejudicar.”
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Rio de Janeiro em fogo alto: a nova cara da gastronomia carioca nesta reportagem que escrevi sobre a cidade para o Público.
Na minha coluna do UOL, escrevi sobre o hábito japonês de presentear com frutas — algumas que podem chegar ao valor de uma moto.
E afirmo na Viagem & Turismo que não há melhor café da manhã que o mexicano, com uma seleção matadora de lugares pelos quais vale a pena acordar mais cedo.
Garfadas da semana🍴
Afinal, o que define um bom vinho? Essencialmente, o seu gosto. Mas há muito mais para considerar [NYTimes]
Tá apertado no orçamento? No Walmart, dá para comprar os alimentos agora e pagar depois [Upworthy]
Nosso conceito é a partilha: a arte de dividir pratos nos restaurantes [Le Monde]
A Coreia do Sul quer banir o consumo do boshintang e, com ele, o abate e a venda de cães para o consumo alimentar [BBC]
Os restaurantes palestinos dos EUA buscam mostrar sua identidade à mesa [Bon Appetit]
Como a cultura alimentar do Peru alçou os restaurantes de Lima ao Olimpo da gastronomia mundial [The Washington Post]
Pizza, lámen, feijoada: a ideia de “comida típica” não passa de uma fantasia [Folha de S.Paulo]
Muitas são as dificuldades de destilar uma bebida na Tailândia: mesmo assim, um grupo de produtores têm criado espirituosos muito interessantes no país [PUNCH]
E dois guias para salvar: os melhores restaurantes da Cidade do México segundo o chef Jorge Vallejo e o bares de vinhos naturais obrigatórios de Madri [El Trinche / Tapas]
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Feliz com a volta da news :))