Comer como um local é uma falácia
A “bourdainização” da comida autêntica e como a pandemia pode ser uma chance de superarmos essa mentira
Há quase dois anos e meio vivendo no Porto, posso dizer que já me sinto relativamente familiarizado com a cena gastronômica local. Pelo menos para reconhecer muitos dos hábitos que os portuenses têm à mesa (porções ou “doses” sempre muito generosas, por exemplo) ou para evitar me expor a algumas armadilhas que os turistas, de quem a cidade parece sentir grande falta, invariavelmente vão cair quando entram em um restaurante que aposta em falsos lombos de bacalhau salgados caindo do teto como decoração.
Posso levar amigos vindos de fora a passear pela Ribeira e escolher um dos poucos bons lugares para comer um excelente “filete de polvo e arroz do mesmo” ali, com a sempre embasbacante vista para o Douro. Posso perceber o valor que eles dão para as tripas à moda do Porto (mesmo não sendo eu, em absoluto, um tripeiro). Posso, com segurança, indicar duas ou três das melhores francesinhas da cidade, e ver beleza na decadência da receita que tem no molho a escorrer por todos os lados da pilha de pães e carnes a amálgama para arrematar todo o seu sabor.
Essa relativa segurança, aliás, me deu a audácia de reunir, para o Eater, um guia sobre como devorar a cidade, uma das nossas melhores apostas para comer pelo mundo em 2020. Mas daí veio a pandemia, e o final dessa história ainda nenhum de nós conhece.
Embora eu já me sinta confortavelmente integrado à paisagem cinzenta e ao “jeito tão fechado” da cidade (que revela sua plena beleza aos poucos, à medida que ganha a confiança do visitante), não posso dizer que sou um local. Muito menos que me sento à mesa como um. Confesso: quase nunca consigo comer toda uma francesinha, não sou grande fã das lampreias no inverno e as bifanas não me inspiram grandes emoções.
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Eu tenho ruminado sobre o que realmente significa "comer como um local" e como essa expressão é, na verdade, uma falácia — e por que deveríamos parar de buscá-la a qualquer preço quando estamos em uma cidade ao qual não pertencemos de fato. Não se pode comer verdadeiramente como um local sem entender toda a complexidade de uma culinária, seu valor cultural.
Nos últimos anos, com o boom do turismo global e acessível, passamos a buscar experiências cada vez mais genuínas, aquelas que os “pacotes de turismo” nunca puderam oferecer. E a comida foi (e é!) a expressão mais aguda desse comportamento. “Deixem os restaurantes de turistas para os outros, eu quero mesmo é ter a experiência de comer como quem vive nesses lugares”, pensamos. É o que um ótimo texto publicado no final do ano passado na Vittles chama de bourdainização da gastronomia local — o efeito Bourdain na cena culinária das cidades.
Mas esquecemos que é impossível ter essa experiência autêntica habitando um corpo de visitante, ou — bate na madeira! — de turista. Como é que pensamos que, em uma semana, podemos nos sentir locais apenas comendo em cinco ou seis restaurantes que as pessoas que moram ali também frequentam? É uma visão redutiva que ajuda a propagar uma versão limitada de outras cozinhas. É, em resumo, um olhar colonizador das culinárias locais, que tende a prestar um desserviço a todas elas.
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A cultura do “comer como um local” virou uma praga e nos trouxe um efeito colateral curioso, ao que acreditamos estar imunes: uma série de restaurantes “tipo local”, bem montados e atrativos, que são feitos especificamente para os turistas que não querem ser turistas, mas que buscam tornar a cozinha de um determinado sítio mais fácil, mais “palatável” ao gosto dos visitantes, que servem as “receitas Nutella” como se fossem “receitas raíz”.
Restaurantes, pois, meticulosamente configurados para servirem comida local que os locais não comem. Pratos e conceitos adaptados a turistas que acreditam ser desbravadores de sabores autênticos quando realmente não são — ou não estão dispostos a sê-lo. Quero comer como um local, mas sem ter que subir o morro, sem ter que cruzar a cidade para longe dos museus que quero visitar, sem abrir mão das confortáveis cadeiras de design onde posso descansar minha bunda depois de horas caminhando sob o sol quente do verão.
A culpa, como sempre, recai na ideia de mercado que ajudou a propagar cidades como destinos gastronômicos, com governos locais investindo milhões em publicidade para se colocar no topo da lista de foodies — que viajam cada vez mais pelo estômago nos dias de hoje. Uma gentrificação da cozinha local esteve em voga, colocando na sombra de pretensos lugares autênticos aqueles que realmente existiam antes das bolhas do turismo.
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A pandemia pode ser uma oportunidade de superarmos essa falácia. Isso porque, entre todos os restaurantes que estão a agonizar numa crise sem precedentes, os turísticos, ou até os “tipo locais”, são os que devem sofrer mais. E os primeiros a fechar as portas, para o bem e para o mal. À medida que todos nós pudermos viajar novamente, precisamos nos livrar de uma vez por todas dessa ideia torta.
Afinal, quando vamos à casa de alguém, queremos ser convidados a entrar, sentar e comer — não queremos nos sentir como se fossemos o “dono da casa”. O mesmo deveria ser para as cidades que visitamos com fome e com curiosidade. Sentar-nos às mesas dos restaurantes não como locais, mas como convidados, como visitantes interessados que reconhecem a oportunidade de estabelecer uma relação de troca que só a comida pode oferecer. Eat like a special guest é o novo eat like a local; e afinal das contas, pode ter muito mais valor.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 A linda reedição desse livro de cozinha de 1898 com receitas do verdadeiro rei da pandemia: o ovo.
MAL PASSADO
👎🏼 Ainda sobre propagandas: o Dia da Mulher e a campanha polêmica do Burguer King que defendeu que o lugar delas é na cozinha 🙄
Visite nossa cozinha 🍳
Os chefs estão de volta à escola: diante de um panorama incerto para o setor gastronômico, os cozinheiros têm criado suas próprias escolas de formação para treinar os profissionais do futuro.
Mais do que as ghost kitchens, chegou a vez dos restaurantes virtuais: aqueles que existem apenas como logomarcas e conceitos online, ao alcance dos aplicativos.
Garfadas da semana🍴
“Era a minha vida”: o Sergio Ristorante sobreviveu por 37 anos — até que veio a pandemia. O triste retrato do nosso momento contado pelos funcionários desse estabelecimento clássico em Silver Spring. {The Washington Post]
Seriam as embalagens elegantes o nosso empratamento dos tempos pandêmicos? [Fine Dining Lovers]
Como fica a alma de um vinho quando se elimina a sua característica principal como bebida: o álcool [The New York Times]
Jay Rayner e o livro gastronômico que iniciou uma revolução no Reino Unido (e no mundo) [The Guardian]
A melhor forma de fazer croutons segundo a ciência [Slate / Food52]
Como a nova onda de imigrantes sírios têm transformado a cozinha paulistana [Folha]
O prato com estrela Michelin mais barato do mundo [The Takeout]
Como ocorre a transmissão: a culpa não é dos restaurantes, mas do comportamento das pessoas, como sempre [El País]
A pandemia deixou claro: ninguém precisa de três refeições diárias [The Atlantic]
Amei o texto do eat like a guest not a local ❤️. É essencial ser guiado na cultura que vc não domina. Isso só faz valorizar a mesma. Tá muito bem escrito amigo. Tem ritmo. Amei ler.
Adorei esta forma de abordar um tema que tanto nos "persegue"
Não tenho conta as vezes que turistas, quando visitavam um local onde trabalhava, me questionavam sobre onde comer, mas nada que fosse turístico! Eu indicava uma série de sítios dos quais eu era cliente e que sabia terem qualidade, mas, nem sempre estavam ali a 2 passos do centro 😉