Comer a Amazônia
Por que valorizar os alimentos da floresta pode ser uma forma de proteger seus povos dos crescentes crimes e atrocidades
Amarildo da Costa Oliveira, mais conhecido como Pelado, é pescador ilegal na região do Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, onde está a segunda maior concentração de terras indígenas do Brasil, com 26 povos de maioria isolados ou de contato recente. Ele ganhou as manchetes dos jornais esta semana quando confessou ter assassinado o pesquisador e indigenista Bruno Pereira e o jornalista inglês Dom Phillips.
Embora o seu nome tenha se tornado popular, a prática a que ele se dedica ainda é uma ilustre desconhecida para muitos de nós. Ali, onde a pesca restrita só é autorizada para alimentação dos próprios pescadores e de suas famílias, homens como Oliveira retiram ilegalmente das águas toneladas de pirarucu e de piracatinga.
O primeiro tem sua pesca ilegal durante o período de defeso nos rios da bacia Amazônica, geralmente entre dezembro e maio, para preservar a biodiversidade local e a espécie. Mesmo após a liberação, o peixe deve ter, no mínimo, 1,5m de comprimento para poder ser pescado.
O segundo tem sua captura e comércio proibidos no Brasil, não só pelo dano à própria espécie, mas porque os pescadores muitas vezes matam botos e jacarés para usar como isca ao peixe, depois contrabandeada para a Colômbia, num esquema que aparentemente lava dinheiro do tráfico e financia a entrada de drogas no Brasil.
Provavelmente é o que leva Pelado e outros criminosos a se arriscarem por canoas pequenas (e menos visíveis) pelos rios da região à procura dos peixes. Os soldados do tráfico atuam ativamente na pesca ilegal por representar uma maneira de manter o fluxo de drogas que vem da Colombia ou do Peru. No caso do pirarucu, um pescador consegue pescar de 50 a 100 quilos de pirarucu para vendê-lo em cidades vizinhas, ele consegue facilmente “esquentar”o dinheiro do tráfico.
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No Brasil, o plano de manejo de pirarucu — que permitiria que o peixe fosse pescado dentro da lei e de normas sustentáveis — está abandonado. Foi proposto como uma forma de incentivo econômico na região para os povos que vivem nas comunidades ligadas pelos rios, sem que isso colocasse em risco a biodiversidade da região.
A FUNAI também tem tido cada vez menos presença ali, onde as forças de segurança pública (que nunca tiveram grande efetivo) minguam a cada dia. Assim, surge um “emaranhado de crimes conectados que evidencia toda a vulnerabilidade dessa região”, como explicou Ayala Colares, pesquisador da Universidade do Estado do Pará, esta semana no podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo.
Há a pesca ilegal, claro, mas também a crescente atuação de grupos ligados à exploração ilegal de madeira bem como outros relacionados ao garimpo e demais crimes ambientais. Esse cenário põe em risco os moradores da região, os que os defendem, e também a própria sobrevivência da Amazônia.
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Grande parte da floresta (85% dela) é motivo de grande preocupação porque os desmatamentos cresceram nos últimos anos. Além disso, está crescendo a degradação florestal. Quando se retira a madeira — e no Brasil isso é quase que totalmente ilegal, é uma indústria criminosa — , se começa a abrir a floresta, que depois dá lugar à pecuária ou agricultura. Nos últimos 15 anos, a área degradada foi o dobro da desmatada.
“Há inúmeros elementos que mostram que o potencial econômico da floresta em pé é muito maior que o de derrubar a floresta. Muito dessa política expansionista agropecuária, da mineração, tem muito mais a ver com um valor cultural do agronegócio, bastante atrasado do Brasil, que valoriza mais o tamanho da propriedade agrícola que o valor econômico da produção daquela área”, explica o climatologista Carlos Nobre, membro da Royal Society.
A justificativa, ele diz, é uma cultura arraigada de "posse de terra”, que é histórica no Brasil. As grandes propriedades, principalmente na Amazônia, têm baixa produtividade agrícola. Inúmeros estudos hoje mostram o potencial de sistemas agroflorestais, que são culturas agrícolas de floresta: ou seja, a floresta nos dá mais se estiver de pé.
Vários estudos mostram que um hectare de agropecuária, da mais produtiva, rende 100 dólares por ano. Um hectare com sistema agroflorestal bem gerido rende entre 500 e mil dólares por ano. O potencial econômico dos produtos florestais e sistemas agroflorestais é muito superior ao da agricultura.
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É nessa chamada bioeconomia de floresta em pé que investe Joanna Martins, da Manioca. O sobrenome denota a sua origem e a luta por valorizar os produtos alimentares da Amazônia. Ela é filha do chef paraense Paulo Martins, considerado o incansável embaixador da sua culinária da floresta, que difundiu técnicas e ingredientes no restaurante Lá em Casa (em Belém) e no festival Ver-O-Peso.
Os povos que vivem na Amazônia estão acostumados a viver com ingredientes, receitas e rituais ligados a essa floresta. “A partir do momento que destruímos essa floresta, também estamos acabando com a cultura desse povo que vive nela — e com isso a identidade. Uma das formas mais cruéis de acabar com uma civilização é acabar com sua cultura”, ela diz. E é o que estamos fazendo com as comunidades indígenas e ribeirinhas que vivem na região amazônica.
A relação com a floresta é muito intrínseca. Por isso, os produtos que ela comercializa vêm do cultivo sustentável de castanhas, do cupuaçu e do açaí. “São sistemas de produção aliados à floresta", defende. O acesso aos ingredientes, antes mais restritos regionalmente, é primordial para o aprimoramento da cadeia produtiva e de distribuição
E precisa ser incentivada pelo consumidor, que hoje já tem tucupi, farinha de tapioca e até frutos nativos ao alcance em mercearias e supermercados. Ela defende que esses ingredientes não podem estar apenas nas mãos de chefs e profissionais, “é preciso que ganhem mais espaço na mesa das pessoas” para se tornarem populares e ajudem a fomentar uma cadeia por trás deles, e inverter a lógica de valor que domina a região, em que a madeira ilegal é roubada (e no entanto não entra no sistema econômico), ou mesmo na exploração do garimpo, que está nas mãos de poucas pessoas quase sempre associadas ao crime organizado.
Colocar produtos amazônicos no nosso prato pode ser uma maneira de usar o sistema capitalista para dar mais valor à floresta em pé, e assim ajudar a proteger não apenas a sua biodiversidade, mas sobretudo os povos que dependem dela para viver.
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Poucos pratos são tão representativos da cena paulistana como a pizza, trazida pelos muitos imigrantes italianos que se estabeleceram na cidade, dando à receita contornos (e coberturas) muito específicos. A jornalista Flávia G. Pinho lançou um livro para contar essa história e eu escrevi a resenha dele para a Folha.
Garfadas da semana🍴
Em Uganda, a invasão da Ucrânia tem tido um efeito muito negativo na alimentação local: a crise geopolítica tem diminuído o tamanho do Rolex, como é conhecido o sanduíche de omelete de legumes (como repolho e cebola) enrolada em chapati que é muito popular nos mercados de rua do país. [Quartz]
Ainda sobre esse tema, com a debandada do McDonald's de seu território, a Rússia criou uma nova marca para vender sanduíches e batatas fritas no país, com um rebrand polêmico [Washington Post]
Os russos juram que não vão sentir saudades: “tem tudo o mesmo gosto” [Nossa / UOL]
Em Portugal, muita gente viu uma enorme semelhança entre o logo escolhido pelos russos e dessa empresa de rações de Barcelos. (E que seja justo uma empresa de rações animais é uma doce ironia que ninguém poderia prever) [NiT]
Uma breve história dos livros eróticos de comida — ou livros de comida erótica? [Eater]
Os próprios clientes já começam a notar a falta de profissionais de sala nos restaurantes — e como isso pode ter um efeito devastador para o mercado [Fine Dining Lovers]
Como o novo Enigma de Albert Adrià (em seu formato mais casual e acessível) é também uma seta que aponta para o futuro da gastronomia [Comer / La Vanguardia]
Parece que as pizzas congeladas estão voltando com tudo [Taste]
E que o bacon feito de algas é uma promessa em alguns restaurantes com estrela Michelin [SF Chronicle]
Muito divertida essa reportagem sobre os bastidores de um dos mais importantes concursos de cheesemongers dos EUA [The New York Times]
O Talho das Manas é o talho das minas [Fugas / Público]
Para terminar por hoje, a carta de despedida emocionada e emocionante do Adam Platt, o crítico de restaurante da New York Magazine [New York Magazine]