Há alguns meses tenho trabalhado em um grande projeto que me tem feito refletir muito sobre o meu papel como jornalista que cobre a área de alimentação. Essa newsletter, aliás, é filha direta dessa reflexão, uma espécie de mesa redonda que invoco todo sábado (ops, domingo, no caso de hoje... desculpem o atraso) para discutir algum assunto que me parece relevante e que, na falta de poder sentar em um bar para debatê-lo com amigos, eu jogo pra vocês, companheiros de reuniões virtuais, à espera de algum interlocutor minimamente interessado nesse meu papo ébrio.
A própria ideia de cobrir alimentação, e não gastronomia, é uma algo que passei a perseguir, numa tentativa de provar para mim mesmo que meu trabalho como jornalista vai muito além da restauração: falamos de hábitos, de personagens capazes de mudar a realidade, as implicações do nosso alimento na sociedade, de como o mercado afeta o que as pessoas comem em casa nesses tempos em que sair para comer é um grande desafio (no mínimo, ético). Falamos?
Tenho minhas dúvidas: a cobertura jornalística que envolve comida muitas vezes acerta quilômetros de distância do alvo que deveria ser a mente do leitor (eu me recuso a usar “consumidor de conteúdo”). Fala em biomas, em jantares exclusivos para grupos seletos de pessoas, em cardápios temáticos das trufas da temporada recém-chegadas de Alba. Mira as estrelas e esquece de olhar pra quem tá ali na sua frente. A quem falam os sites, jornais, blogs, afinal?
No meio da maior pandemia do século, que economicamente representa a perda de “uma Ford por semana” na restauração, em que chefs precisam vender o almoço sem conseguir pagar o jantar, em que a crise econômica causou o maior aumento do gás de cozinha em anos, li há algumas semanas em um grande jornal brasileiro uma reportagem sobre um chef que ao passear com seu cachorro viu os cogumelos silvestres encontrados no espaço urbano paulistano como uma “aposta para a gastronomia do futuro”. Na mesma temática, o mesmo jornal trouxe um texto sobre “Amy, a garçonete-robô”. Neste jornal, assim como em muitos outros, o espaço dedicado à comida tem diminuído significativamente. Um sintoma ou uma causa, pergunto eu?
Não tenho dúvidas de que esses temas podem ser interessantes. Mas seriam eles os mais relevantes agora? É sobre isso que deveríamos (o plural me inclui!) falar neste momento? Nos últimos meses, como um pernilongo faminto, tentei encontrar a veia mais aparente para alimentar minhas ideias sobre o meu trabalho: como cozinheiros lidam com um tempo ocioso que não era previsto ou desejado, como a saúde mental dos profissionais de restaurantes “bugou” (como diriam meus sobrinhos) nesses tempos, como encontrar saídas para lidar com a pandemia, como países como a Venezuela têm sofrido demasiado com mais uma crise, etc.
Tenho certeza de que muitas vezes passei longe das urgências dos leitores, mas em tempos tão incertos e desafiadores, é preciso parar o tempo todo para ajustar o foco. Nesta semana, o Pete Wells, o crítico de restaurantes do NYTimes, escreveu como a pandemia afetou seu trabalho: fazia sentido publicar resenhas de restaurantes atribuindo a eles estrelas diante desta realidade? Ele acha que não. “Na pandemia, não há restaurantes ideais, apenas lugares que estavam se reinventando à medida que avançavam”, conta ele, que colocou na geladeira o famoso sistema de avaliação por estrelas que o NYTimes adota desde os anos 1960.
“Durante meses, depois que todos os salões de restaurantes da cidade foram forçados a fechar em março passado, não escrevi nada que se parecesse com uma crítica. Todo o negócio e todas as pessoas nele estavam sofrendo, e eu passei meu tempo como repórter, descobrindo como alguns deles estavam se saindo. Eu rapidamente aprendi que, ao falar com alguém que ganhava a vida com restaurantes ou bares, eu precisava reservar pelo menos uma hora”, confessou.
Wells conta que os diálogos que teve com chefs nesses meses foram muito distintos dos que costumava ter: ao invés de descrever técnicas, debater receitas, eles “falaram em falir, falaram em chorar e não querer sair da cama”, como relata. Como jornalista do maior jornal do mundo, ele tinha a obrigação de ouvi-los e reportar muito dessas conversas em reportagens e análises. Cobrir a “gastronomia” passou a ser como bancar o psicólogo.
Vejo muitos veículos se adaptando: o Eater, que criou uma nova seção para falar de receitas (At Home), intensificou sua cobertura “de mercado”. Publicou reportagens sobre o que representaram as ajudas do governo, como as dark kitchens são uma concorrência injusta para o setor e, mais recentemente, fez uma série de reportagens sobre como a frente fria que causou sérios problemas em estados como o Texas afetam muito a alimentação nos EUA. A The New Yorker questionou as medidas sobre comer dentro ou na parte de fora dos restaurantes, o El País abordou o salário dos garçons. Em Portugal, na França, na Alemanha e também no Brasil, os jornais e seus profissionais buscam se moldar aos tempos.
Jornalismo é notícia, acima de tudo. Jornalismo gastronômico (ugh) também deveria ser. Reportar o que de mais relevante acontece no setor é a nossa tarefa: como isso influi na vida dos leitores, como guiá-los para uma percepção mais fidedigna do que está acontecendo, até como ajudar restaurantes a serem ajudados.
O food journalism (em inglês, parece abarcar mais significados) precisa falar dos profissionais da área, e não apenas de chefs. De ingredientes e das intrincadas relações econômicas e políticas que eles sofrem, e não apenas de receitas. Do setor, e não apenas dos restaurantes dos chefs estrelados. Os jornalistas da área precisam urgentemente diversificar seus olhares, suas fontes (por que só os chefs? E os cozinheiros de linha?), falar com as pessoas (mesmo com a imposição do distanciamento social).
Se a pandemia vai parir outra realidade diferente da que nos habituamos, precisamos também estar prontos para ela. E até lá, reportar como isso pode afetar a todos nós. Honestidade com o leitor, humildade para se colocar no seu papel, tirar o celular da cara e olhar o que se passa nas mesas do lado. Isto é também um mea culpa. Espero conseguir sair disso um profissional melhor, capaz de criar conteúdos mais relevantes que vocês queiram ler.
E a caixinha aqui está aberta para isso: o que devia eu estar escrevendo agora para falar com você?
Um abraço e até a próxima semana!
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 O depoimento de uma crítica de restaurantes sobre a percepção dos chefs homens (que ainda dominam o mercado!) de aceitarem seu trabalho.
MAL PASSADO
👎🏼 O vírus não discrimina, mas as pessoas, sim: precisamos falar sobre preconceitos e o sentimento anti-asiático.
Garfadas da semana🍴
Como uma iguaria chinesa ajudou o exército Manchu a vencer a Dinastia Ming [CNN]
O Bill Gates quer que os países ricos vivam à base de carne sintética [Exame]
Como Portugal se tornou a nação do bacalhau [NatGeo]
Será que você está sabendo ferver sua água para cozinhar corretamente? [Washington Post]
Como a democratização dos “sabores trufados” (com a praga dos azeites e manteigas) está prejudicando o mercado de trufas [El País]
E os tênis da Nike inspirados em café que eu quero já [Sprudge]