Cheiro de comida
Os odores têm um poder de persuasão mais forte do que as palavras, as aparências e as vontades
“É fácil reconhecer a comida que você faz pelo cheiro indiano”, disse uma vez um cliente ao chef Himanshu Saini. O que poderia ser um elogio para alguns, para ele soou como uma constatação até um pouco difícil de engolir.
Saini é jovem e ambicioso: comanda três restaurantes em Dubai, onde tenta impressionar os seus visitantes com uma visão bastante diferente — e muito menos pejorativa — da cozinha de seu país natal, vista tantas vezes como uma comida “apenas reconfortante”, “de rua”, “sem técnica”, como ele me conta ter ouvido em seus poucos, porém prolíficos, anos de carreira.
Para isso, esforça-se para atingir um equilíbrio formidável com tantos sabores pronunciados que utiliza (especiarias e mais especiarias!), busca reproduzir uma estética impressionantemente requintada para a seus pratos (em que as cores da bandeira indiana dão o tom em quase todos eles, numa sutileza quase poética) e mostra a vasta comida indiana através do prisma de técnicas aprimoradas em “cozinhas internacionais”.
Em suma, ele quer que seu trabalho seja reconhecido por todo o conjunto, não apenas pelo cheiro que alguns temperos mais proeminentes que usa insistem em dominar — e, que assim, rotulam sua comida como “indiana” numa classificação simplista, reducionista até.
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Ué, mas não seria o aroma um excelente condutor de lembranças, a passagem mais barata para nos levar de volta algum lugar em que já estivemos antes? Claro que sim. Cheiro de comida tem poder porque é um dos gatilhos mais diretos para lembranças afetivas que ficaram incrustadas na parte cerebral que deve corresponder à sala com poltrona de frente para lareira e tapete felpudo da nossa massa cinzenta.
Mas também pode trazer de volta recordações bem menos agradáveis, especialmente se você é uma criança de origem asiática em um país ocidental. Lembro sempre da história de Justin, o garoto invisível do encantador livro infantil homônimo The Invisible Boy, que é alvo de bullying por seus amigos da escola por carregar na lancheira seu bulgogi com pauzinhos para a hora do recreio, enquanto todos os outros se deliciam com bolachas e sucos de caixinha.
A experiência de Justin, aliás, é tão recorrente que ganhou uma expressão própria nos EUA, onde uma série de filhos de imigrantes passam pelo mesmo constrangimento quando precisam abrir a lancheira e deixar claro como suas raízes são diferentes das de outras crianças. O “lunchbox moment” é tão definidor na memória de tanta gente que se tornou um tema recorrente entre autores, jornalistas e escritores que já reuniram milhares de caracteres para contar suas vivências pessoais moldadas pelas caretas feitas quando o aroma de seus lanches se espalhava pelo refeitório ou pelo pátio lotado.
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Mas não é preciso ser criança, claro, para passar pelo constrangimento de ter a sua comida — e o cheiro dela — definindo quem você é, de uma maneira não raro preconceituosa. Aquela cena em que a mulher da família rica faz um comentário maldoso (e, na percepção dela, secreto) sobre o cheiro de comida impregnado na roupa do homem da família pobre que lhe serve como motorista no excelente Parasita é outro exemplo acachapante.
Não são raras as cenas em que o odor da comida do outro causa um embrulho no estômago de alguns. Nos aeroportos, nas ruas, nas mesas dos restaurantes. O bafio forte da culinária alheia mete nojo, causa repulsa. O eufemismo do “cheiro forte” para normalizar a xenofobia, para perpetuar o preconceito por “comidas étnicas” (étnica para quem?). Se não cheira a um aroma que eu reconheça automaticamente, é repugnante, sujo até. O bafo desagradável que se desprende de panelas com temperos que desconheço é algo que não quero invadindo minhas narinas, credo!
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“As pessoas podem fechar os olhos para a grandeza, para os horrores, para a beleza, e os ouvidos para as melodias ou palavras enganosas. Mas eles não podem escapar do cheiro. Pois o aroma é irmão da respiração e, com ela, ele entra nos seres humanos, que não podem se defender contra ele, a não ser se não quiserem viver”, como escreve Patrick Suskind no excelente Perfume, História de um Assassino.
“Os odores têm um poder de persuasão mais forte do que as palavras, as aparências, as vontades”, ele diz. Por isso eles são tão representativos e carregam tantos símbolos também das culturas culinárias que espalham pelo ar em moléculas das quais não conseguimos desviar. O cheiro do alimento do outro se impõe, junto com sua origem, por isso por vezes nos desagrada tanto. É possível escolher não provar um prato, não olhar para ele; mas é impossível não senti-lo.
Tudo isso porque prefiro acreditar que a comida de Himanshu Saini não tem “cheio indiano”. Ela tem forma, gosto e cheiro da comida que só Himanshu Saini conseguiria preparar — e com a vantagem daquele balanço meticuloso de sabores e aromas (aí, sim, indianos) que ele aprendeu a dominar tão bem.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Nesses tempos de ansiedade e desespero, há uma série de projetos e instituições dispostos a ajudar cozinheiros e profissionais da restauração a manter a saúde mental. O Fine Dining Lovers compilou uma lista de onde procurar ajuda.
MAL PASSADO
👎🏼 A rotina dos trabalhadores de Chinatown em Nova York nos dias que correm, com a crescente do racismo aos chineses e outros asiáticos: “eu sinto os olhares das pessoas sobre mim”.
Visite nossa cozinha 🍳
Como vai ser o serviço dos restaurantes depois da pandemia? Com menos discurso, esperamos.
As mudanças climáticas vão transformar a forma que comemos: escrevi para a revista do Expresso sobre um novo mapa agrícola mundial que se impõe, sob o risco de termos que deixar para trás uma série de alimentos como os conhecemos.
Garfadas da semana🍴
As dietas dogmáticas e os impactos do que decidimos colocar no prato segundo Andoni Luis Aduriz [El País]
Os queijeiros americanos que estão se especializando em um tipo específico e crescente de produto: os queijos veganos [The New York Times]
Um esperado retorno aos restaurantes que amamos [T Magazine]
“Eu odeio seguir instruções, mesmo que sejam as minhas. Eu quero mudar tudo, até mesmo numa receita que eu criei”, Nigella Lawson, nossa musa gastronômica, is back. [The New Yorker]
O Google criou um assistente para tornar seus pedidos nos restaurantes — eles garantem — mais fáceis [The Verge]
Uma saudade: as jantaradas com os amigos [Eater]
No seu plano de dominação mundial, a Amazon agora tem uma linha de produtos alimentares própria [Grocery Dive]
O salmão impresso em 3D mais perto de chegar à sua geladeira [The Spoon]
A Pringle’s para comprar exclusivamente com criptomoedas — e não ter a chance de provar. O universo das NFTs chega à comida [Food and Wine]
Com inovadores mini purificadores sobre as mesas, este resort da Califórnia quer mostrar como podemos voltar a respirar aliviados dentro dos restaurantes [The Washington Post]
Como o misto quente (vá lá, a tosta mista, se me lê em Portugal) dominou o mundo [El Mundo]
Miguel Esteves Cardoso força a caneta para se opor ao modismo dos peixes maturados, ou o que chama “revolução do peixe velho” [Público]
Como a Nestlé criou uma estratégia muito bem arquitetada para fazer seu leite condensado dominar a doçaria brasileira [O Joio e o Trigo]
Como combater o racismo estrutural nos restaurantes? Parece que essa fundação tem algumas respostas [Eater]
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