A comida que nos chega
Como o delivery está afligindo a dinâmica — e os menus — dos restaurantes
Chegamos à décima edição! E tenho que confessar que esse compilado digital que engarrafo todo sábado para cruzar a minha ilha e chegar aos correios de vocês aí do outro lado tem sido um grande prazer. Obrigado por lerem a newsletter, já somos quase mil leitores. Se gosta do conteúdo, compartilhe com as pessoas que você acha que também podem gostar. E ajude a deixar nossas conversas sobre comida mais abrangentes, mas sempre Ao Ponto.
*
Poucas coisas transformaram tanto o cotidiano dos restaurantes nos últimos 12 meses quanto o delivery. A tendência de digitalização do setor, já apregoada há muito, ganhou uma repentina superaceleração em tempos em que os restaurantes se viram obrigados a fechar e só podiam atender os clientes em suas próprias casas. Era o possível a fazer — e muitos negócios correram para se inscrever em plataformas, criar dinâmicas de entrega, montar cozinhas fantasmas para aproveitar uma demanda que não para de crescer.
Ótimo para as empresas de tecnologia que apostam nas entregas, talvez as únicas do setor de restauração que realmente ganharam dinheiro nessa crise. Muitas delas, como Doordash, Grubhub e Uber, estão aproveitando o momento para abocanhar ao máximo a sua participação no mercado, enquanto os restaurantes estão de joelhos.
Os dados são assustadores, como tenho falado aqui há algumas semanas. Na Europa, de onde teclo esses caracteres, algo como 50% dos restaurantes não devem reabrir após a pandemia (mesmo com os diversos pacotes de ajuda ao setor). Enquanto isso, a entrega de comida bate recordes inimagináveis até mesmo para seus CEOs mais otimistas. Em março, o Just Eat, um dos gigantes do segmento, conseguiu alçar ganhos de 256 milhões de euros em 2020, graças a um salto de mais de 45% em seus pedidos em relação a 2019. Trata-se de um mercado global que deverá valer cerca de US$ 365 bilhões até 2030.
A convergência da maior demanda dos clientes, a posição enfraquecida dos restaurantes no mercado, e uma enchente de investimento em plataformas online entregou as condições perfeitas para que essas empresas pudessem prosperar. Muitas delas, aliás, se aproveitando da fraqueza dos negócios nesse momento, cobrando taxas muito altas para oferecerem seus serviços. Na maioria, são pouco mais de 10% em cima de qualquer serviço. Outras chegam a ficar com mais de 40% das vendas. Em todos os casos, entretanto, os restaurantes são forçados a entrarem em promoções que podem chegar a 50%, diminuindo drasticamente uma margem de lucro que tem sido quase nula.
*
Muitos negócios optam por fazer parte do jogo, mesmo com regras tão desfavoráveis, porque é a única forma de seguirem adiante neste nefasto tabuleiro. É uma ilusão de “avanço de posição” onde “voltar três casas” é uma constante, com regulamentos que mudam todos os dias (as fases adotadas por alguns governos, da “amarela” à “roxa”, são uma metáfora dura de como o jogo só fica mais imprevisível e árduo).
Ainda assim, restaurantes em todo o mundo demonstraram sua incrível agilidade e capacidade de inovar e reinventar à medida que se adaptam a outros modelos, das caixas para cozinhar em casa aos produtos de prateleira. Restaurantes finos e com estrela Michelin superaram seu medo de takeout e delivery, tentando fazer o que podiam para ver algumas moedas pingarem no caixa.
Mas com o recrudescimento das medidas diante das novas ondas que assolam os países (há alguns na Europa entrando na quarta!!), o fôlego já está mesmo acabando. Algo que se tornou sintomático nos cardápios que muitos restaurantes passaram a adotar para suas entregas. Os restaurantes, até mesmo os mais disruptivos, acabaram em pizza, em hambúrgueres, em sanduíches. Uma avalanche de “comidas fáceis” (digo no sentido de apelo, muito mais que de técnica) que dominaram as plataformas.
Já não há espaço para a criatividade, para se manter fiel aos engenhosos conceitos desenvolvidos: é preciso sobreviver. E para isso, vender o quanto mais possível. Principalmente quando seus concorrentes diretos são cadeias de fast food que ofertam sanduíches a 1 euro. Com o dinheiro das pessoas minguando nas carteiras, as tais “propostas gastronômicas" que se tornaram um hit no início da pandemia hoje parecem até uma afronta à situação que vivemos.
“Não há problema se fazemos hambúrgueres para podermos resistir”, disse o chef peruano Gastón Acurio numa entrevista ao simpósio Diálogos de Cocina há duas semanas. “Nós nunca poderíamos imaginar que Astrid e Gastón fosse fazer delivery, e ainda assim foi uma das nossas ferramentas para resistir e começar a trabalhar o novo futuro deste restaurante, que, a partir de agora, deve pensar primeiro em sua comunidade”, disse. “Vivemos focados sobre esse objetivo da grandeza culinária. Hoje você tem que colocar tudo na sua verdadeira dimensão”.
Não poderia concordar mais com ele, mas receio como as consequências dessa “comida de delivery” podem por um lado asfixiar a criatividade, gerando possíveis sequelas difíceis de recuperar a curto e médio prazo. Como esse cenário desfavorável pode tolher o desenvolvimento da gastronomia como área de conhecimento inventivo? Quais os efeitos colaterais que devem permanecer no setor quando tudo isso passar?
*
Acho que precisamos, mais do que nunca, considerar os efeitos nocivos da indústria de delivery para a restauração. Como podem empresas que adicionam pouco valor ao segmento, que têm gastos mínimos e empregados sem benefícios, angariar tanto dinheiro sobre aquilo que comemos? De uma maneira geral, creio que uma mudança já está em voga, com medidas como a que obrigou a Uber no Reino Unido a reconhecer seus trabalhadores como funcionários. E muitas outras ainda precisam vir.
Não se trata de demonizar as plataformas e empresas de tecnologia, claro. Mas talvez de tentar enxergar como é possível equilibrar as forças para que todos os lados sejam beneficiados de forma mais equânime. Não há dúvidas de que o futuro do mercado perpassa essencialmente pela digitalização, nas ofertas de entrega e no boom dos restaurantes virtuais (ou os “restaurantes sem restaurante”, como foram apelidados), aqueles que só existem nos aplicativos de entrega, ao alcance de alguns cliques na tela do celular.
Eles podem ter um papel significativo no setor ao ajudar empresários a desenvolverem melhor suas marcas, verem o crescimento de seus negócios como nunca poderiam imaginar — ou alcançar sozinhos. E continuarão presentes (muitos estudos apontam que com a mesma projeção) mesmo quando os restaurantes voltarem a abrir. Enfim poderemos ver como será esse equilíbrio de forças, e percebermos melhor a maneira como esse “novo digital” pode conviver com a restauração que vai (re)nascer desse período pandêmico.
Até lá, nos resta, como clientes, definirmos qual modelo desejamos apoiar, e assim moldarmos, a partir de agora, o futuro que esperamos ver emergir. Cada pedido que você faz pelo celular é um passo a caminho daquilo que deseja sustentar. Não se esqueça, basta apertar o botão de confirmar que seu desejo já estará a caminho.
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 As empresas hoje são mais definidas por aquilo que apoiam do que por aquilo que vendem. Bela iniciativa essa da Heineken de criar um programa contra abuso de álcool por jovens de 18 a 24 que aborda questões socioemocionais e desafios da juventude que são gatilhos para o consumo excessivo.
MAL PASSADO
👎🏼 Quando os restaurantes voltarem a abrir normalmente em um futuro ainda incerto, enfrentarão um outro e incontornável desafio: contratar mão-de-obra. Em grandes cidades do mundo, houve uma debandada de profissionais do setor para cidades menores em busca de uma vida mais barata (e possível!) nesses tempos em que muitos perderam seus empregos. O chef e empresário Tom Colicchio afirma que mais de 80% de seus ex-funcionários deixaram Nova York.
Garfadas da semana🍴
Chupar ou não chupar? Os melhores argumentos para sugar os sucos provenientes das cabeças dos lagostins — e de todas as outras espécies de decápodes que caírem no seu prato [Eater]
Você pode substituir sua airfryer dos sonhos por um forninho elétrico muito mais versátil [El País]
Cadê os picles que estavam aqui? A escassez da iguaria nos hambúrgueres americanos (uma queda de mais de 80%) tem relação com a falta no mercado dos vidros onde eles são feitos [Food & Wine]
As galinhas estão mais soltas: em 2015, apenas 5% dos frangos/ovos produzidos nos EUA eram relativos à criação de animais fora de gaiolas. Hoje, o número já representa 29%, uma da s maiores conquistas para os direitos animais no país [Vox]
No more sugar high: o lendário Pierre Hermé a ensaiar uma redução de açúcar de suas preparações [Le Figaro]
Um ex-inspetor do Michelin conta sua rotina de refeições por restaurantes em mais de 20 anos trabalhando para o guia [Foodclub]
Parece que, enquanto houver pandemia, haverá pessoas saudosas e dispostas a pagar para comer comida de avião — sem sequer sair do chão [BBC]
Esqueça os leites de castanhas: chegou a vez dos leites feitos a partir de micróbios [Fastcompany]
E dos snacks feitos com ultrassom de alta-frequência que não precisam de calor para “cozinhar” [Food Dive]
Ah, e dos camarões à base de plantas!! [The Spoon]
Um mistério para os cientistas, perigosas para os seus caçadores e cobiçadas pelos gourmets: senhoras e senhores, com vocês, as trufas do deserto [Gastro Obscura]
Como a pandemia tornou os acalourados concursos de devoradores de pimenta mais diversificados nas plataformas online [The Guardian]
Parabéns pela matéria, Rafa! Rica, como sempre. Conteúdo extremamente importante para leitura, reflexão e discussões futuras.
Vivemos um período triste, diferente, mas que demanda importantes reflexões para posicionamentos futuros.