“Quando provar essa comida, nunca a vai esquecer”, diz Balram Halwai a seu patrão, Ashok, assim que eles se sentam em uma mesinha de um restaurante de rua numa região popular de Nova Déli. Chega à mesa um prato de alumínio com uma porção de quiabo frito (Kurkuri bindi), arroz basmati e um chutney.
Enquanto o patrão usa o garfo para provar a receita, Balram pega logo um naan com as pontas dos dedos e mergulha o pão fofinho no molho, e olha fixamente para ver a reação do chefe. “É incrível”, diz ele, enquanto o empregado abre um sorriso de contentamento diante da aprovação de Ashok. “De hoje em diante, só como a tua comida”, emenda.
A cena é de White Tiger, filme que estreou há uma semana na Netflix, e que narra a história de um rapaz de casta inferior que consegue trabalhar de motorista na casa de uma família de mafiosos ricos e influentes da Índia. O conflito de classes é o caldo que vai ferver a trama, até que ele seja finalmente derramado, lambuzando tudo e todos.
Nas cenas gastronômicas do filme, a comida é uma representação do extrato social de um país (e de um mundo) tão desigual: vivendo em quartos tomados por uma infinidade de insetos perto dos esgotos, os empregados comem com as mãos, se lambuzando da rica comida local, para desaprovação de seus senhorios. “Você está cheirando muito forte a comida, todo sujo, Balram, vá se trocar”, diz em uma cena a esposa de Ashok. Nos apartamentos espaçosos com vista para uma cidade que não vêem, os patrões pedem pizza (de mac’n’cheese!) pelo telefone.
Numa das passagens mais intrigantes, Balram vai à cozinha preparar os quiabos fritos para Ashok, numa tentativa de reanimá-lo depois que Pinky, a esposa, o deixa para voltar a Nova York. “Veja o que eu lhe trouxe, senhor, quiabo quentinho”, diz o empregado, abaixado com a tigela nas mãos. “Como comemos naquela noite, saboroso e crocante”. Irritado, Ashok dá um tapa e derruba a louça, que cai no chão e se parte, espalhando toda a comida. “Vai embora!’.
O empregado, na sua inocência, pensou que sua receita reconfortante fosse capaz de agradar o patrão e resgatar o momento que tiveram juntos à mesa, numa rara comunhão de classes. Engano de Balram: raras vezes a comida nos une, como quer nos fazer acreditar o clichê. Quando falamos da nossa complexa e cada vez mais desigual sociedade, a comida é mais um fator de distanciamento.
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Eu bem lhes avisei, na semana passada, que essa newsletter podia ter seus dias mais amargos. É o caso hoje. Mas depois de ver o filme e me deparar com as notícias sobre o abismo social que a pandemia tem feito crescer, resolvi que esse era o pretexto de hoje para falar sobre comida. “Vamos ter fomes de proporções bíblicas em 2021”, alarmou o líder do Programa Alimentar Mundial da ONU, David Beasley, no final do ano passado. “A missão de atenuar a fome e desnutrição será muito mais difícil este ano”, disse Beasley, vencedor de um Nobel da Paz.
Impossível ficar alheio a isto enquanto vejo influencers gastronômicos que sigo no Instagram viajando pelo mundo tomando coquetéis nas praias, como se o mundo fosse o mesmo de anteontem. Não é. Não será. A consequência dessa pandemia vai ter efeitos devastadores na nossa sociedade. Muito mais gente pobre, muito pouca gente ainda mais rica.
O consumo de carne no Brasil, por exemplo, deve despencar a níveis anteriores à década de 1990. Ou seja, regressamos 30 anos no poder de compra das pessoas que, só há poucos anos, podiam se dar ao luxo de ter bife no prato mais de uma vez por semana. Óleo, gás, arroz, e outros itens básicos da alimentação, poderão ficar ainda mais caros. Para nós, com mais acesso, o fato do preço da farinha aumentar (pela modinha de estarmos fazendo pães de fermentação natural em casa) muda pouco nossas vidas.
Também não deixamos de pedir delivery, mesmo sem dar caixinhas generosas para o entregador que se expõe à contaminação para nos trazer na chuva uma sacola com comida que provavelmente nunca provarão. Não deixamos de comer nossos queijos importados, de abrir nossos vinhos (afinal, estamos todos precisando de uns goles a mais nesses dias).
Acho que o novo lockdown (em Portugal, permaneceremos trancados até março, pelo menos) me deixou mais rabugento, desculpem, não queria azedar o molho de queijo com trufas de ninguém, juro. Não estou falando que não podemos tomar os vinhos da adega, que não devemos comer aquilo que nos dá prazer. Eu mesmo dou um gole mais generoso às vezes num Alvarinho para ajudar a engolir a minha própria hipocrisia. Não se trata disso.
Mas acho importante termos a consciência que cada lasca de trufa que o chef rala sobre a embalagem biodegradável que nos chega à porta pode representar alguns quilômetros a mais de distância social que nos aparta do mundo lá fora. E lembrar que, quando comemos, nem sempre estamos mais próximos.
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O ponto da semana 🥩
Bem passado
👍🏼 A presença feminina ganhando espaço no conservador Guia Michelin: os dois novos restaurantes com três estrelas da Grã Bretanha são liderados por mulheres (Clare Smyth e Hélène Darroze), isso depois do primeiro vegetariano da história da França ter sido reconhecido com uma estrela pelo trabalho da chef Claire Vallée.
Mal Passado
👎🏼 Parece que o atum usado nos Subway dos EUA não tem nada de atum, afinal, segundo a Corte da Califórnia.
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Visite nossa cozinha 🍳
Nesta semana, escrevi sobre como o que os políticos escolhem colocar da boca pra dentro pode dizer tanto sobre eles quanto suas promessas e planos de governo — ou até mais.
Chegou a vez da cozinha hiperlocal: escrevi para o Pùblico sobre os chefs que buscam na paisagem do entorno os ingredientes e o conceito focal para seus restaurantes.
Vem aí o Livro do Porco: um projeto que eu tenho a honra de embarcar como co-autor com o grande chef Jefferson Rueda. Sai em 2022!
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Garfadas da semana🍴
Com a pandemia, a cozinha de casa se tornou o restaurante para muitos chefs desempregados e novos empreendedores. Pelo Instagram, eles conquistaram uma nova clientela — e ganharam o mundo [NYT]
E a pandemia também parece ter mudado um bocado o serviço de quarto dos hotéis [Eater]
Ainda Covid-19: se perder o olfato/paladar por um tempo já deve ser um pesadelo, imagine então ficar com aversão ao cheiro de comida [BBC]
Aparentemente, há quem não saiba comer spaghetti bolognesa [Guardian]
O constante dilema ético do sacrifício de animais para fins terapêuticos e/ou alimentares em nome da tradição [El País]
O melhor gelo de todos pode ser mais fácil de conseguir do que você pensa [New Yorker]
O restaurateur que é também o crítico gastronômico se seu próprio restaurante — e viralizou pelos comentários sincerões que comenta em seu menu (como “nossa outra salada é melhor que essa” e “não espere que seja super saboroso”)