A comida não precisa ser salva
Ela precisa nutrir e chegar a mais pessoas, ao contrário do que propõe o nosso sistema alimentar
De tempos em tempos, irrompe nos noticiários um tipo visionário dizendo que encontrou uma forma de salvar o sistema de alimentos mundial com alguma ideia inovadora. Produzir legumes de forma mais barata a partir de fazendas indoor, criar biomassa com farinha de insetos, um novo sistema logístico capaz de unir produtores e consumidores de uma maneira muito mais fácil.
Não raro, são gênios da tecnologia que se colocam como super-heróis que, com seu olhar poderoso, foram capazes de ver algo óbvio, que estava ali, mas que nenhum de nós, reles mortais, fomos capazes de enxergar. Lemos encantados as suas frases de efeitos, seguimos seus raciocínios lógicos, mas, ao final, algo sempre desce meio quadrado pelo esôfago: a proposta é consertar o sistema alimentar arruinado pelo capitalismo com, vejamos, uma nova forma de capitalismo: melhor, 2.0, que ruma para um futuro mais justo.
Para mim, sempre soa como se todo o discurso fosse apenas uma forma de justificar o ganho financeiro — e não há mal nenhum em querer juntar alguns montes de dinheiro, afinal. Mas esses empreendedores não parecem estar verdadeiramente dispostos a entender como as pessoas comem. Querem nos convencer a comer bifes de laboratório enquanto grande parte da população só está mesmo preocupada se terá arroz com feijão no prato na semana que vem — especialmente nesses tempos pandêmicos, em que a fome voltou a roncar mais alto no bojo do nosso planeta.
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O jornalista e escritor norte-americano Mark Bittman nos propõe um questionamento tão simples quanto fundamental em seu novo livro Animal, Vegetable, Junk (que eu comecei a ler e já não consigo mais largar): qual o papel essencial da comida? Segundo ele, é primordialmente nos nutrir, promover a saúde do nosso corpo. Todas as outras discussões — ser mais ou menos sustentável, promover o comércio justo, etc. — surgem dessa cristalina resposta.
“E quando fazemos essa pergunta e olhamos para o sistema alimentar que temos, há uma desconexão gritante”, disse ele em uma imperdível entrevista para o podcast do Ezra Klein nesta semana. “O sistema alimentar não está produzindo comida para nutrir as pessoas, mas essencialmente para obter o máximo de lucros a partir dela”.
O problema começa todo aí, Bittman defende: se produzimos comida para as pessoas, nos preocupamos com o solo, com outras espécies, com o planeta, que é onde elas vivem, afinal. Se estamos de olho no lucro, nada disso tem importância — a curto, médio ou longo prazo. O que os teóricos do Vale do Silício não conseguem enxergar naquilo que dizem antever é que o futuro da alimentação precisa mais de justiça, de reparações, e de redistribuição do que de disrupção. O caminho é mais claro do que eles podem perceber.
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E envolve, primordialmente, dar às pessoas acesso à alimentação saudável de forma mais barata. É sintomático que em meio à crise atual que estamos vivendo, com a alta do dólar e o aumento do consumo interno, que faz com mais pessoas fiquem sem condições para comprar comida sequer, as empresas de alimentos estejam aproveitando o aumento de preços para lucrar mais, para baterem metas que seriam difíceis em tempos de retração do mercado.
Como bem observou minha amiga Cristina Leonhardt — uma das pessoas com olhar mais arguto para a produção de alimentos que eu conheço — em uma palestra estarrecedora a que assisti esta semana, quando a economia retrocede, são sempre os mais vulneráveis que sentem mais, claro – e isso fica nítido quando vemos que itens básicos da cesta básica, como óleo e arroz, tiveram subidas importantes de preço.
“Deveríamos ter mecanismos para frear essa disparada, e aqui não falo apenas do governo, mas da própria consciência das empresas dentro de uma situação de crise como a que vivemos”, ela aponta. Enfrentamos uma situação de exceção e de aumento da percepção da sociedade sobre as responsabilidades compartilhadas também por empresas na manutenção da qualidade de condições de vida. Nossa sociedade retrocedeu e ficou mais pobre, mais carente; e uma sociedade pobre não é boa nem mesmo para os negócios.
Muitas empresas já acordaram para isso e passaram a entender que elas também têm um papel fundamental nessa história, que a fome que nos desumaniza é uma responsabilidade do sistema do qual elas são uma engrenagem importante para fazer girar. “Como a indústria de alimentos será vista nos livros de história que falarão sobre a pandemia?”, ela pergunta. Talvez algum visionário aí na plateia queira levantar a mão para responder. Não? Ninguém?
O ponto da semana 🥩
BEM PASSADO
👍🏼 Um novo estudo apresenta uma solução engenhosa para resolver um dos maiores problemas que nosso sistema alimentar impõe às mudanças climáticas hoje: alimentar o gado com algas poderia reduzir em 82% as emissões de metano na atmosfera (e, de quebra, diminuir as emissões de carbono causadas pelos pastos).
MAL PASSADO
👎🏼 Enquanto isso, a pandemia fez aumentar os casos de fraudes na venda de peixes e mariscos: um levantamento mostrou que 40% de mais de 9 mil produtos comercializados em mercados, restaurantes e peixarias foram vendidos propositalmente com informações erradas. 1 em cada 3 restaurantes na Europa vendem uma coisa no cardápio e servem outra pro cliente. Para ficar com os olhos (de peixe) bem abertos!
Visite nossa cozinha 🍳
A discussão sobre a descolonização da gastronomia brasileira ganha força com o trabalho de novos chefs por todo o Brasil, com a valorização de ingredientes nativos e técnicas seculares. Minha reportagem sobre o tema na BBC.
Garfadas da semana🍴
Belo texto da Soleil Ho sobre os desafios de ser uma pessoa de cor escrevendo sobre gastronomia — especialmente nos tempos em que o racismo contra asiáticos nunca foi tão latente SF Chronicle]
“Por favor, não mude seu nome para Salmão”, clama o governo de Taiwan após um restaurante local fazer uma promoção de sushis vitalícios para quem tivesse “gui yu” (ou “salmão”) no nome. Mais de 150 pessoas correram para os cartórios, no caso que a mídia local apelidou de “salmon chaos” [The Guardian]
O que as pessoas mais cozinharam durante a pandemia? Os portugueses fizeram mais bacalhau à Brás, os franceses comeram mais crepes do que nunca e o spaghetti alla carbonara foi o prato preferido dos italianos [Fugas/Público]
Para encorajar os moradores a diminuírem o consumo de carne, o governador do Colorado decretou o dia 20 de Março como o “Dia sem Carne” no estado. Em resposta, o governador do Nebraska, estado vizinho, resolveu adotar o mesmo dia para outra efeméride: a do “Dia de Comer Carne”. Viva a quinta série! [NY Times]
Quem são as pessoas que colocam suas vidas em risco para que possamos saborear uns percebes ou comer uma fatia de queijo? [Tapas]
O que significa, afinal, “restaurante” nesses tempos em que marcas só existem virtualmente e que empreendedores criaram seus negócios nas cozinhas de suas próprias casas? O conceito do que é um restaurante pode se transformar muito nos próximos anos [Eater]
O Piauí vai pagar um auxílio de R$ 1.000 para os profissionais de restaurantes [UOL]
Em tempos em que está cada vez mais caro encher uma sacola no mercado, aqui está uma ótima relação de vinhos para se comprar com dois dígitos (sim, ainda é possível) [Paladar]
Depois daquela clássica crítica do Pete Wells no NYT sobre o Peter Luger (quem lembra?), a crítica da New Yorker parece comprovar que as receitas da emblemática steakhouse do Brooklyn ficam melhores em casa [The New Yorker]
O penúltimo parágrafo expressa, na minha opinião, as contradições do capitalismo. A citação de Leonhardt indica algo que não existe. "Consciência das empresas" não há, nunca houve, porque empresas operam explorando o trabalho e competindo entre si no mercado em busca de lucro. Não há concorrência capitalista ética - as exigências éticas vêm de outras dimensões da vida, mas não organização da produção capitalista. Assim, dizer que "uma sociedade pobre não é boa nem mesmo para os negócios" é uma constatação que nos mostra as contradições estruturais, também explicada pela lógica da relação capital-trabalho: o capitalismo é ilógico e leva ao decréscimo da taxa de lucro dos empresários. As formas de contornar isso têm sido o aprofundamento da hiperexploração do trabalho (com precarização) e das formas de produção de matéria-prima (também mais hiperexploradas), mas não é mesmo uma saída. Tudo se esgota, tudo tem limite. Quando, por exemplo, o Michael Pollan fala da estratégia neoliberal na produção de milho nos EUA ele está tratando disso, embora não mobilize os conceitos da economia clássica ou a interpretação do Marx pra esse tipo de fenômeno: a proteção da produção do milho leva ao decréscimo da taxa de lucro (ou seja, é expressão da lei tendencial da queda da taxa de lucro), mas que o subsídio direto aos fazendeiros incentiva que mantenham a cultura do milho, apesar do baixo preço do mercado (que vai cair ainda mais, com alta oferta), daí eles vão lá se endividar para comprar mais maquinário (trabalho morto) pra ganhar uma fatia de mercado maior, mas que logo mais será alcançada pelos demais, e o preço cai ainda mais. O que vem sustentando isso é, sim, o Estado e as políticas de regulação tomadas nesse âmbito. E por isso o lobby das meia dúzia de indústrias que realmente ganham dinheiro ultraprocessando milho é tão importante. Elas sustentam um sistema que destrói florestas, esgota o solo, polui mananciais, paga cada vez menos quem produz no campo, hiperexplora quem produz na fábrica, afoga os consumidores nos ultraprocessados de commodities, adoece a população com comida envenenada e dita os parâmetros de produção de alimentos (e substâncias comestíveis) pros animais, nós inclusos. Isso sem contar a divisão internacional da produção, né, no Brasil isso obviamente é pior. Na pandemia, há mais oportunidade de precarizar a vida do ponto de vista capitalista, né. O que importa é o balanço de dividendos para os investidores, não se tem comida no prato. Para cair no clichê de citar necropolítica, conceito da vez, o andar de cima sabe bem"quem se deixa viver e quem se deixa morrer". Não adianta voluntarismo de uma ou outra empresa, o que importa analisar é como o sistema de competição entre elas gira. Não há saída dentro desse modelo, não há possibilidade de reforma no capitalismo, porque os interesses estruturais de quem efetivamente produz e de quem explora o grupo que produz não são conciliáveis - entendo que nossa morte não é uma alternativa justa.
Rafael, as newsletters estão fantásticas. Parabéns! É uma alternativa excelente para discutir as perspectivas política e cultural da comida (para além de receitas e críticas de restaurantes). Sobre o tema desta semana, ele reforça muito a ideia do que ouvi nestes dias: algo como "o futuro da inovação é olhar para as antigas tradições". Também nessa linha, gostaria de dar uma dica: o documentário "Kiss the ground", sobre a importância da regeneração dos solos para a captura de carbono da atmosfera (com soluções regenerativas na agricultura e na pecuária). Abraços.